quarta-feira, 21 de junho de 2017

Ternura


TERNURA

   O final do mês de Maio, nas comunidades cristãs de Luso e Pampilhosa, como em boa parte das demais comunidades cristãs da Bairrada, a que pertencemos, foi marcado por duas celebrações, no âmbito da catequese, profundamente marcantes para as crianças e jovens que as celebraram – a primeira Comunhão e a Profissão de Fé (com a nova designação de Festa da Eucaristia e Festa da Fé). Se a primeira consistiu na receção do segundo sacramento da Iniciação Cristã – a Eucaristia -, sempre tão desejada pelas crianças; a segunda acompanhou um momento especial da vida dos adolescentes que a celebraram: o fim do primeiro ciclo da catequese – a denominada catequese de infância – e a sua passagem para a pré-adolescência, com tudo o que esta comporta de transformação física, psíquica, afetiva e até social.

   Mas, destas celebrações, assinalo sobretudo o imenso afeto que as envolveu, vivido pelos pais, familiares, catequistas, pelo pároco e demais membros das comunidades. Contudo, a maior ternura foi aquela que expressa pelas crianças e adolescentes, em sinais simples, sinceros, despretensiosos, genuínos, sem quaisquer outros filtros senão a transparência dos seus sentimentos mais puros e verdadeiros, deu o tom a estas celebrações. Particularmente evidentes, é certo, nas crianças mais pequenas, pois os adolescentes sentem já a necessidade de autocontrolarem estes seus sentimentos. Mas, de igual forma, com a mesma ternura, mesmo que expressa de forma mais contida.

   Refletindo sobre estas celebrações, sentia como aquelas crianças, vivendo tão espontaneamente e em gestos tão simples e sinceros estes sentimentos, nos tocam profundamente, a nós adultos, levando-nos a redescobrirmos o que há de melhor em nós e que por vezes esquecemos – a ternura, o verdadeiro carinho ou o afeto. E sentia como elas nos interpelam a manter permanentemente um coração de criança: igualmente generoso, simples, sincero, terno, capaz de gestos simples e tão significativos. Tocando o que há de mais belo e feliz em nós! Vivendo o que nos faz verdadeiramente felizes. Não que permaneçamos infantis, mas não perdendo – como tantas vezes se afirma – esse coração de criança, no que ele tem de melhor.

   Nem a propósito, quase a findar o mês, acompanhava também o Centro de Assistência Paroquial de Pampilhosa (CAPP) e seus convidados na celebração festiva dos 107 anos de vida da Dona Cacilda Martins; um exemplo precisamente de quem chega a uma provecta idade com um coração de criança. Se tivesse de definir numa palavra a maneira de ser desta senhora, a palavra não poderia ser outra senão essa: ternura! Certamente com as suas dificuldades e limitações, como todos nós, esta senhora, não obstante, é o exemplo evidente de quem viveu e vive uma vida marcada pela ternura. Assim o tenho experimentado eu, ao longo destes dez anos que conto com responsabilidades paroquiais na Pampilhosa; e assim o experimentam tantos outos, creio, a começar pelos utentes e auxiliares do Centro, que partilham o seu dia-a-dia com a Dona Cacilda. Um exemplo de quem sabe cultivar e colher o mais belo fruto da vida, ainda que tal faça parte da sua natureza, mesmo passando por algumas exigências pessoais, como o dever de criar os seus filhos, ficando viúva demasiado cedo. A sua ternura expressa-se na palavra bondosa, na serenidade, no seu ligeiro olhar sorridente, no beijo sincero, enfim: num querer bem que transparece no seu olhar! Nesse olhar físico que agora não pode ter, pois a falta de visão tem sido a sua grande perturbação; mas no olhar interior, o mais importante, em que continua a envolver-nos com doçura.

  Em dia da criança, que hoje celebramos, e tendo como exemplo esta venerável anciã, recolhamos o que a vida nos oferece de melhor: a ternura de uns para com os outros. Num afeto sincero, generoso, sem duplicidades nem interesses, capaz de preencher os nossos corações, nessa sensação de felicidade que todos nós almejamos; bem como a base de uma comunhão sincera que transforma as nossas relações interpessoais em autêntica vivência de fraternidade!  O dia da criança interpela-nos a garantir a cada uma delas as condições necessárias ao seu justo e equilibrado desenvolvimento. Mas ensina-nos também que a ternura é um valor que nunca devemos deixar esmorecer nos nossos corações. Sim, porque as crianças continuam sempre a ensinar-nos!

Pampilhosa, 01 de Junho de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(48ª Reflexão)

 

Simplicidade


SIMPLICIDADE

   O fim-de-semana anterior foi marcado por uma diversidade imensa de emoções que encheram as nossas almas, de cidadãos portugueses. Cada uma distinta da outra, segundo a sua própria natureza, teve como traço comum aquilo que posso denominar como simplicidade. Esta palavra, que significa a qualidade do que é simples, que não carece de ostentação, aplicando-se às pessoas ou aos objetos, aponta-nos ainda para outro conceito: o da beleza! Na verdade, o mais belo é aquilo que toca pela simplicidade e pelo que é genuíno, sem grandes construções.

  O Papa esteve em Fátima, como peregrino da paz e da esperança. Apresentou-se, como lhe é habitual, na simplicidade da sua pessoa e da sua ternura, próximo daquela multidão que o aclamou e saudou. Quis ser um simples peregrino entre peregrinos, não obstante a consciência do seu ministério. Convidou-nos a unirmo-nos a ele, enquanto ele se unia a cada um de nós, para, em conjunto e pela sua voz, nos entregarmos aos cuidados da Mãe. Sim, porque como afirmou na sua homilia da Missa, no dia 13, «temos Mãe»! Não me detenho nos múltiplos gestos vividos pelo Papa e que tanto nos tocaram. Recolho apenas dois: a sua simplicidade e proximidade ao sair do papamóvel, no dia 12, à noite, para caminhar pelo recinto do Santuário de Fátima, tornando-se próximo de quem o acolhia; ou ainda a sua emoção e comunhão com os peregrinos, acenando à Virgem Mãe, com o seu lenço branco, na hora do adeus à Virgem. Não obstante ter convidado os peregrinos a não permanecerem numa piedade vazia, partilhou connosco a certeza do amor da Mãe que cuida de nós como seus filhos. Mas, no mesmo contexto, tivemos a graça de ver canonizadas duas crianças – Francisco e Jacinta Marto – que, na sua humildade e simplicidade, tiveram uma graça especial de comunhão com Deus, através de Maria. Mais do que videntes de Fátima, impressiona a sua simplicidade e genuinidade na correspondência à mensagem de Nossa Senhora. Cada um, com a sua personalidade, viveu uma mesma entrega por amor da humanidade. Numa simplicidade e decisão que enternece! Duas crianças a lançarem-nos grandes desafios de vida cristã, sobretudo na contemplação de Deus e na solicitude para com todos os homens, a quem reconhecemos como irmãos. Aqui se expressando aquele princípio bíblico: «se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus» (Mt. 18, 3).

   Numa realidade completamente distinta, vimos os benfiquistas celebrarem a vitória do seu clube em mais um campeonato – como tetra campeões. Se nem sempre podemos falar de simplicidade neste tipo de celebrações, quantas vezes dadas a alguns exageros, posso, contudo, sublinhar a personalidade de Rui Vitória, o treinador do Benfica. Sempre me cativou a sua forma decidida de trabalhar, sem se deter nas considerações alheias, sobretudo de outros treinadores. Quando pulula o confronto, consegue ser um dos treinadores mais moderados nas suas tomadas de posição, deixando-nos entrever que é na simplicidade do trabalho de cada dia e não no múltiplo palavreado que as vitórias se alcançam.

  Mas, como se não bastasse, o dia 13 iria surpreender-nos ainda com uma outra simplicidade que toca: a vitória de Salvador Sobral (e da sua irmã, Luísa, não o esqueçamos) no Festival Eurovisão da Canção; interpretando o tema português a concurso «Amar pelos Dois». Quando, como outros, pensei que não era uma canção própria para um festival, tive de me redimir e perceber que, na verdade, também aqui o que é simples e genuíno se transforma em algo de tocante. E se a melodia é belíssima, com uma letra que tem conteúdo, expressando ternura e riqueza de sentimentos, impressionou a singeleza da apresentação – com alma, sem ostentação; diria mesmo, de uma forma despojada -, valorizando a comunicação e a arte; isto é, a música e a sua interpretação. Daí que tenha cativado boa parte dos júris nacionais e a esmagadora maioria do público que, no televoto, se manifestou a favor desta simplicidade.

   Enfim, um fim-de-semana cheio e rico, como certamente não teremos muitos outros, onde a simplicidade se transformou em beleza e alegria, expressando, em domínios tão distintos, a nossa alma portuguesa! Com verdade, no meio de todas estas alegrias, bem podemos sublinhar aquele pensamento de Leonardo da Vinci, que nos diz: «A simplicidade é a maior sofisticação». Certamente um princípio a considerar em todos os domínios das nossas vidas!

Pampilhosa, 18 de Maio de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(47ª Reflexão)

Europa


EUROPA 

   Celebrámos nesta semana o dia da Europa, como sempre acontece a 09 de Maio de cada ano. Este dia definiu-se a partir da data do célebre discurso fundador da União Europeia, que teve como sua primeira concretização a CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Este discurso, proferido por Robert Schumann, Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, a 09 de Maio de 1950, ficaria mesmo conhecido como a Declaração Schumann. Inserido no contexto do pós 2ª Grande Guerra Mundial, em que era necessário harmonizar as relações entre a França e a Alemanha, criou o sonho de uma Europa unida e solidária. Efetivamente, podemos definir como principais ideais europeus, já no discurso de Schumann, a paz, a solidariedade, a unidade entre todos os povos europeus, apontando, inclusive, para uma «federação» europeia.[1]

   Estas perspetivas delineadas por Schumann foram acolhidas com enorme entusiasmo, criando-se uma dinâmica que conduziria à atual União Europeia. Aos ideais iniciais, juntavam-se ainda outros, como o de uma europa de culturas, na valorização e respeito por cada cultura nacional, formando, no seu conjunto, um imenso património cultural europeu. Um projeto que tive oportunidade de aprofundar, nos bancos da faculdade, quando estudava História, e que sempre me apaixonou, particularmente quando, a par desta unidade, o mundo se globalizava.

   Contudo, volvidos 67 anos sobre este discurso, a União Europeia vê-se a braços com a sua sobrevivência e com a fidelidade aos ideais que presidiram à sua construção. Com efeito, a Europa deixou de ser uma união solidária, segundo aquela perspetiva de Schumann, como ele afirmava no seu discurso: «A Europa não se fará de um golpe, nem numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto»[2]. Isto é, uma construção contínua com base na solidariedade entre os povos europeus.

   Ora, se assim foi, nos seus primeiros tempos, a União Europeia organiza-se hoje como uma instituição burocrática, acima dos estados europeus e seus cidadãos, cavando o seu próprio fosso. Sinal evidente disso mesmo são os múltiplos nacionalismos, que o projeto inicial procurou combater, e que pululam atualmente por todo o espaço europeu. É curioso que, na semana em que celebramos o dia da Europa, nos tenhamos sobressaltado com as eleições francesas, onde a extrema-direita, fascista e nacionalista, se afirmou como segunda força nacional para a presidência daquele país.

  Num estudo profundo – uma tese de doutoramento sobre as contradições da União Europeia – o brasileiro Luiz Felipe Osório, define um conjunto de vicissitudes que determinam a atual crise da Europa, que aqui apenas posso elencar: o seu modelo neoliberal, baseado numa moeda sem estado; uma estrutura dominada politicamente por essa economia liberal; a falta de uma fiscalidade unificada; o descolamento da política económica relativamente à política social; uma clivagem imperialista entre o centro e a periferia; e uma forte deterioração democrática.[3] Para acrescentar, a jeito de conclusão: «os tecnocratas comunitários formulam soluções mecânicas e abstratas para lidar com problemas concretos»[4].

   Aceitando tal quadro, que nos parece evidente, consciencializamo-nos que a União Europeia, assente nestes métodos e princípios ideológicos não tem possibilidade de futuro.

  Mas creio – como certamente muitos creem – que a Europa poderá rever-se na sua orientação, refundando-se na sua dinâmica de construção.

   Pessoalmente, julgo ser esta a hora do regresso aos seus ideais de fundação; de regresso ao discurso de Schumann e de tudo o que ele encerra para o progresso integral da Europa; de regresso a uma autêntica solidariedade entre os povos, que mobilize cada europeu em torno de um projeto que sinta efetivamente como seu. Na hora presente, urge afirmar que é necessário determinação para renovar a Europa! A União Europeia ainda tem futuro; assim o queiram os seus principais responsáveis.


Pampilhosa, 11 de Maio de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(46ª Reflexão)


[1] Cf. SCHUMANN, Robert – A Declaração de Schumann de 9 de Maio de 1950. Disponível em https://europa.eu
[2] Ibidem
[3] Cf. Luiz Felipe Brandão Osório – Um Estudo Crítico da União Europeia: contradições do seu desenvolvimento institucional e normativo. Rio de Janeiro, UFRJ, Março de 2015, pp. 140 – 153.
[4] Ibidem, p. 150.
 

Fátima


FÁTIMA

   Estamos no mês de Maio! Um período do ano habitualmente dedicado a Nossa Senhora. Se o mês de Maio, como mês de Maria, vem já de longe na nossa história, ligado às devoções marianas; ganhou, para nós, um novo sentido com as aparições de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, na Cova da Iria, aos pequenos pastorinhos. Maio tornou-se o mês da Senhora de Fátima – nas celebrações marianas que pautam a vida de algumas das nossas comunidades paroquiais, das nossas famílias ou de algumas pessoas individualmente, com a celebração comunitária ou pessoal do terço; nas múltiplas peregrinações penitenciais ou de ação de graças, que enchem as nossas estradas e caminhos, de norte a sul do país, em direção ao santuário de Nossa Senhora; nas celebrações festivas do treze de Maio, que se renovam em cada ano, na consagração a Deus mediante a intercessão maternal de Maria.

   Este ano o mês de Maio ganha um novo colorido e uma nova alegria, na multiplicidade de acontecimentos que viveremos nas celebrações aniversárias, particularmente neste treze de Maio: o Centenário das Aparições aos pastorinhos, na Cova da Iria; a canonização de dois deles – Francisco e Jacinta Marto -; e a visita do Papa Francisco, que virá a Fátima como peregrino «na Paz e na Esperança». Certamente um momento de grande alegria para muitos de nós!

   Mas, no contexto do Centenário das Aparições, muitas vozes se têm levantado em torno da análise do que realmente se passou, há cem anos atrás, no descampado da Cova da Iria. Temos assistido a uma excessiva preocupação de clarificar conceitos como aparição ou visão. Sem me querer deter excessivamente nesta questão, direi apenas que Nossa Senhora apareceu efetivamente aos pastorinhos, porquanto aparição significa, entre outros sentidos, «visão sobrenatural». Ora, é evidente que Maria não apareceu de forma corpórea, física, àquelas crianças, mas sim numa visão espiritual – a «visão sobrenatural». Daí que Lúcia visse e ouvisse sempre Nossa Senhora, enquanto os dois irmãos, Francisco e Jacinta, tivessem experiências diferentes na visão e escuta da «Senhora mais brilhante que o sol». O mesmo acontecendo com as multidões que, entretanto, se foram deslocando para a Cova da Iria, a cada dia treze, particularmente do mês de Outubro, que não vendo Nossa Senhora, apenas testemunharam os sinais da sua presença, como aconteceu com o denominado «milagre do sol». Na verdade, como refere o Cardeal Ratzinger, perfeito da Congregação da Doutrina da Fé, atual Papa emérito Bento XVI, a visão que os pastorinhos tiveram foi uma «força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível» (Comentário Teológico à Mensagem de Fátima). Isto é, não foi uma experiência meramente intelectual, muito menos fantasiosa, mas sim uma presença espiritual de tal ordem que bem podemos dizer que para aquelas crianças foi uma vivência real. Por outro lado, há ainda quem afirme que se tratou de uma mentira engendrada pelas crianças ou uma construção da Igreja Católica. Ora, nem aquelas simples crianças tinham capacidade de resistir às pressões a que foram sujeitas, pelas autoridades eclesiásticas e civis, inclusive com ameaças de morte, persistindo na mentira; nem a Igreja reconheceu imediatamente o fenómeno de Fátima, o que só viria a acontecer mais de uma década depois, em 1930.

   Fátima, cuja mensagem «profética» se foi desvendado ao longo destes cem anos, é hoje um singular espaço de espiritualidade. Ali vivemos facilmente a experiência do sobrenatural. E é ainda na história - de cada peregrino, de cada peregrinação, de presença de cada um dos últimos Papas, a começar logo em Paulo VI, em 1967 - que experimentamos o autêntico dom de Deus que, por Maria, Ele nos quer oferecer.

  Mas, mais do que qualquer outra consideração, em Fátima cada um de nós encontra a ternura de uma Mãe que nos acolhe – nas nossas alegrias, tristezas, esperanças e inquietações – e com a sua solicitude maternal nos encaminha para o coração amoroso de seu Filho e para a comunhão amorosa com o Deus Trindade.

   Que Ela, a Mãe que amorosamente quis habitar no meio de nós, nos acolha, nos escute e nos conduza à vida plena no seu Filho Jesus Cristo, a Quem permanentemente nos oferece!

Pampilhosa, 04 de Maio de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(45ª Reflexão)

 

 

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Futebol!


FUTEBOL
    Desde sempre, na história, os diversos jogos constituíram a vivência lúdica das pessoas e das comunidades. Para tanto, na antiga Grécia e antiga Roma construíram-se espaços próprios para a prática destes desportos, que eram, simultaneamente, ponto de encontro social e de vivência comunitária. Sem dúvida que algumas práticas eram marcadas pela agressividade dos participantes, como as lutas de gladiadores na antiga Roma, que podiam terminar com a morte de um deles, sob indicação do imperador; ou como as cenas de martírio, nomeadamente de alguns cristãos que, à época, entravam na arena para serem colocados em luta contra animais ferozes, com os quais se debatiam (ou talvez não!), até à morte, para gáudio dos assistentes. A verdade, porém, é que estes jogos e vivências lúdicas serviam para congregar as comunidades, para a sua distração (mesmo que aos olhos do nosso tempo com práticas inaceitáveis!) e não para as opor ou fazer conflituar.

   Ora, as nossas práticas lúdicas – onde se insere uma grande diversidade de vivências culturais e desportivas – evoluíram com os tempos, assumindo modos e contornos diferentes! Uma das práticas desportivas que mais se afirmou, um pouco por todo o mundo, foi precisamente o futebol – jogo que nasce, ainda que sem certeza absoluta, cerca de 3.000 a 2.500 a.c., na China, embora com a sua organização atual no séc. XIX. Esta vivência lúdica evoluiu, com as suas múltiplas equipas, colocando em confronto grupos rivais, que procuravam, no confronto de grupos, alcançar a desejada vitória. É certo que esta rivalidade se inscreve no espírito de luta e confronto que sempre marcaram os vários grupos humanos, visando a vitória. De alguma forma, mimetizando os próprios combates tribais ou comunitários que procuravam a sua subsistência no confronto com o inimigo.

   Mas o futebol tornou-se exclusivamente uma experiência lúdica, onde a oposição entre equipas e adeptos se vivia num espírito de sã convivência e confronto. Daí a afirmação, tão genuína, do denominado fair play que, significando literalmente “jogo justo”, veio a considerar-se como jogo amigável e de respeito mútuo.

   Acontece, todavia, que no presente – e de forma transversal a vários países – o futebol se tornou num combate bastante agressivo. Não tanto ao nível das equipas, onde, não raro, vemos belos sinais de amizade e de respeito entre jogadores, mas sim ao nível dos adeptos e dos dirigentes. É que o futebol tornou-se num imenso negócio, que envolve milhões de euros e a participação de milhares e milhares de pessoas, guiadas, não raro, pelos dirigentes desportivos.

   Portugal vive de forma singular este fenómeno, ou não fosse um país de futebol. Mas aquele que era um fenómeno de sã convivência e de sã rivalidade, transformou-se numa vivência de oposição e de luta, com confrontos verbais e físicos muito cruéis, onde, inclusive e com demasiada frequência, se põe em causa a integridade física de muitos dos adeptos das várias equipas. Sobretudo para muitos elementos das claques de futebol, cujo objetivo seria apoiar a sua equipa, o futebol transformou-se paulatinamente numa vivência de confronto e de agressividade. É certo que nesta vivência de grupo, unidas às convicções de clube, se unem muitas realidades sociais, culturais e até políticas, que formam um caldo propício para este tipo de fenómenos. Serão os psicólogos e sociólogos certamente os mais capazes de explicar tais manifestações. Mas é minha convicção de que as condições apontadas, manipuladas pelos dirigentes desportivos – que neste quadro têm uma responsabilidade acrescida – se constituem como a base onde assenta toda esta agressividade.

   Se é certo que temos de melhorar permanentemente as nossas condições sociais e culturais, temos igualmente de renovar o sentido de fair play, para que o futebol seja apenas e tão só aquilo que é: uma sã competição, entre rivais que se respeitam, como vivência lúdica das comunidades que tanto o apreciam. O futebol tem de ser uma experiência grata e de feliz concorrência entre equipas opostas – numa oposição saudável, na amizade e no respeito mútuo! Precisamos de reavivar o fair play!

Pampilhosa, 27 de Abril de 2017
Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho
(44ª Reflexão)

Avós!


AVÓS

    Há dias senti-me particularmente tocado pela profunda comoção com que um jovem se despedia de um dos seus avós, no contexto da sua partida do meio de nós. E compreendi profundamente tal comoção! Afinal aquele não fora apenas o seu avô, um familiar direto, por quem nutriu um natural carinho, na proximidade normal das relações familiares. Fora muito mais: fora o seu amparo, o seu herói e o seu paciente caminheiro, que tantas vezes manifestou a paciência necessária para o acompanhar, se alegrar e entusiasmar nas suas conquistas pessoais – essas conquistas que se vão alcançando com a idade, cada uma própria da respetiva etapa de crescimento. E aquele avô acompanhou cada uma, especialmente nas diversas fases da sua infância e parte da sua adolescência! Mas, acima de tudo, aquele avô foi o seu companheiro, o seu contador de histórias, o poço de afeto onde, quando criança, aquele jovem mergulhou a sua vida e bebeu da água saborosa do seu amor. Aquele avô abriu-lhe perspetivas de vida, sem o saber, precisamente com as suas histórias, o seu exemplo, e a sua suave conduta, ajudando-o a discernir o que é importante do que não é importante. Numa palavra: aquele avô ensinou-o a ser homem! Esse homem que ele agora quer ser!

   No breve cortejo fúnebre, até ao carro que o levaria à sua última morada, o jovem seguiu silencioso, mas solícito, abraçando a sua avó – essa mulher que acabava de perder o companheiro de todas as horas, mas que fora, para ele, o seu neto, igual suporte de uma infância e de uma adolescência feliz! Essa avó que o acolhia, logo de manhã, em sua casa, para que ele pudesse dormir o último sono do amanhecer, antes de ir para a creche, pois os pais saiam cedo para o emprego; essa avó que o acolhia sempre de sorriso rasgado e com um coração de imenso afeto, quando o avô chegava com ele, pela mão, para lanchar; essa avó que igualmente ouvia as suas histórias e que brincava com ele, nalguns momentos de lazer; essa avó que lhe contava outras histórias, mas do mesmo tempo das do avô, que tanto o faziam sonhar por dentro. Afinal, essa avó desmedida no seu afeto que, quantas vezes, se permitia tolerar pequenos prazeres ou pequenas travessuras, que os seus pais jamais tolerariam – são assim os avós, quase sempre mais condescendentes que os pais, sem fazer perigar um projeto de educação! Por isso aquele jovem a abraçava e sentia dever ser ele, agora, o seu amparo, numa hora de tristeza e de dor.

   Esta história, deste jovem, num contexto natural de separação, será, por certo, a história de tantos jovens e de tantos avós.

   Num tempo em que a vida, felizmente, se prolonga e ganha nova qualidade no avançar dos anos; mas num tempo, igualmente, em que os casais jovens têm tanta dificuldade em conciliar a sua vida laboral com a vida familiar, os avós surgem como uma bênção – um dom para os filhos, permitindo-lhes a organização das suas vidas; mas, sobretudo, uma enorme bênção para os netos, a quem, com uma enorme ternura e disponibilidade dedicam as suas vidas e os seus recursos íntimos, de afeto e ternura, tornando-se nos verdadeiros pilares do seu crescimento humano equilibrado e feliz.

   Certamente que aquele jovem, recordando as suas memórias de infância, de quando olhava o céu estrelado com o seu avô e contemplava as estrelas como se fossem seres pessoais, nas noites da sua vida irá olhar para uma delas e repetir, como tantas vezes terá feito: «Avô conta-me aquela história!». E vai recordar como cada história foi tão importante para si!


Pampilhosa, 20 de Abril de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(43ª Reflexão)

 

 

Páscoa!


PÁSCOA

   A palavra Páscoa, com origem no hebraico pesah e no aramaico phasha, por via do grego pascha, significa literalmente «passagem», ou «trânsito»[1].

   Para o povo hebraico, a páscoa significava a libertação do Egito, pela mão de Moisés e a condução à Terra da Promessa que o Senhor, o Deus de Israel, lhes havia prometido. Na verdade, a páscoa judaica celebra o início desse trânsito e a passagem a caminho da terra prometida. Para os cristãos, a Páscoa toca o mistério mais profundo de toda a nossa existência humana – a passagem da morte à vida! Efetivamente, celebrando o acontecimento da morte e ressurreição de Cristo, o Filho de Deus que desceu à nossa humanidade, e que por nós deu a Sua vida, celebramos igualmente com Ele a nossa passagem a essa mesma vida, como dom que nos vem da graça batismal. Com esta certeza, afirmava São Paulo: «Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, também a ressurreição dos mortos veio por um homem» (1Cor. 15, 20 – 21). Na verdade, Cristo foi o primeiro a ressuscitar – como primícia – para nos fazer viver uma vida semelhante à Sua. E essa graça já nos foi dada pelo dom batismal, pois, como afirma a Igreja, pelo batismo «somos regenerados como filhos de Deus» e «tornamo-nos membros de Cristo» (CIC. 1213). Ora, ser regenerado significa, etimologicamente, nascer de novo (regenerare), precisamente porque nos tornámos membros de Cristo. N’Ele, o Senhor Vivo e Ressuscitado, vivemos uma vida nova. Este é o grande dom pascal e a fonte de toda a nossa esperança. Por isso esta é a nossa maior alegria, que não nos cansamos de proclamar neste tempo.

   Mas se a Páscoa tem este sentido para quem é crente – judeu ou cristão -, que significado poderá ter para quem não tem fé? Numa perspetiva transcendente, os cristãos creem que Cristo morreu por todos e a todos concedeu já uma vida nova. Por isso se empenham no anúncio permanente desta boa notícia (evangelion) a cada um dos seus irmãos, para que todos n’Ele acolham esta boa nova. Contudo, numa perspetiva meramente imanente ou horizontal, a ressurreição é um convite à permanente renovação da vida humana. Perante as múltiplas situações de morte que a humanidade, e cada um de nós, enfrenta, em tantas circunstâncias, somos convidados, neste tempo, a passar dessas vivências de morte à renovação do dom da vida. São sinais de morte a violência, a guerra, a injustiça, a mentira, a maledicência, a desonestidade, o roubo, a deslealdade ou a infidelidade. Como são sinais de morte tantos vícios que, depauperando a dignidade da vida humana, condicionam a vida como uma existência livre. O tempo da Páscoa, enquanto «passagem» ou «trânsito» é um convite singular à renovação. Passar da morte à vida, significará então assumir a não-violência, a construção da paz, a luta pela justiça e pela verdade, o cultivo da bondade e da honestidade, a lealdade ou a verdadeira fidelidade.

   Mas, acima de tudo, a Páscoa é a grande realização do amor – da entrega da vida de Alguém que, por amor de nós, aceitou oferecer-se até ao fim. Dessa entrega em que emerge a absoluta novidade da Ressurreição. Se a consideramos em sentido pleno, tendo como consequência essa vida que jamais terá fim; não deixamos de a considerar também como um convite permanente, para todos, a fazer da nossa história pessoal e coletiva, uma contínua passagem do nosso egoísmo ao autêntico e verdadeiro amor. Realidade que não é exclusiva de alguns, mas sim património de todos! O amor, que está no centro de toda a vida humana, como seu fundamento e sentido, será por certo o grito maior a ecoar na Páscoa de cada um de nós – crentes e não crentes!

   A todos, votos de uma Páscoa Feliz!



Pampilhosa, 13 de Abril de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(42ª Reflexão)



[1] FLORISTÁN, Cassiano – Voc. Páscoa. In FLORISTÁN, Cassiano – Dicionário de Pastoral. Porto: Editorial Perpétuo Socorro, 1990, p. 402.