sexta-feira, 14 de julho de 2017

Gestão Turística e Identidade


GESTÃO TURÍSTICA E IDENTIDADE!

   Estamos no verão! Período do ano em que a maioria das pessoas aproveita para viver alguns dias de férias, retemperando as forças após um ano de trabalho. Mas o verão, para nós, portugueses, tem significado também um maior afluxo de turistas estrangeiros, que nos visitam, aproveitando as qualidades naturais e culturais do nosso país, para usufruírem do mesmo descanso e de algumas atividades lúdicas que Portugal lhes possa proporcionar.

   Certo é que, apesar de o verão ser o período de turismo por excelência, o fenómeno turístico, particularmente de incoming (entrada de turistas estrangeiros em Portugal), já não se resume apenas a esta estação. Com fluxos diferentes, a entrada de turistas regista-se ao longo de todo o ano. O que é uma enorme vantagem económica, pois Portugal tem beneficiado profundamente desta atividade, fazendo com que o país se afirme cada vez mais como destino turístico.

   Todavia, há que salvaguardar alguns princípios fundamentais na gestão turística, para que esta atividade não se sobreponha a outras, conduzindo a situações de instabilidade e insustentabilidade. Como o boom turístico tem sido muito grande, nos últimos anos, há cada vez mais particulares, a par das grandes empresas do setor, a procurar beneficiar das vantagens económicas desta atividade. O que, em parte é legitimo, mas acarretando vários perigos.

   Todos sabemos que os fluxos do mercado – e o turismo, em boa parte, insere-se também aí – se definem por oscilações, variando entre movimentos em alta e em baixa, e não na permanência de uma linha contínua ou sempre em crescendo. Essa é a opinião unânime dos especialistas em economia e comprovável pela história. Portugal beneficia, de momento, ao nível do turismo, de vários fatores: das suas qualidades internas, que é fundamental promover; mas também de múltiplos condicionantes externos, que conduzem à opção por este destino turístico. Daí a necessidade de pensarmos o presente, mas também com o olhar no futuro. Ora, o preocupante é vermos muita gente a querer esgotar o presente sem essa perspetiva de futuro, na gestão da atividade turística, com prejuízo para a identidade das comunidades e com a possibilidade de comprometer o futuro próximo. Há dias ouvia a notícia de que vários proprietários de imóveis nos bairros típicos de Lisboa estão a notificar os seus inquilinos para que abandonem estes espaços, sob pretexto de quererem efetuar obras de fundo nestes imóveis. Sabendo que a lei permite ações de despejo com base neste pressuposto, a verdade é que muitos destes proprietários estão a reconverter os seus imóveis para alojamento familiar, destinando-os precisamente à atividade turística. E aqui está a perversão de um sistema, gerando instabilidade – particularmente para quem é morador – e futura insustentabilidade – pois é possível que não tenhamos, no futuro, mais longínquo, tantos turistas na cidade como presentemente. Conclusão: retiramos dos bairros os habitantes que lhes dão o seu verdadeiro rosto, com uma cultura típica, que tende a apagar-se, perdendo-se o que é genuíno e atrativo nestes bairros; indiferenciamos os espaços, o que lhes rouba o seu interesse; e futuramente podemos não ter turistas a ocupar estes imóveis; o que conduzirá, inevitavelmente, à perda de identidade e à desertificação destes espaços históricos. Ainda que sabendo que a venda de imóveis a estrangeiros, em Lisboa, seja atrativa, mas conscientes de que estes são, para eles, apenas uma segunda residência. O que, na prática, não inverte a tendência de desertificação, já tão acentuada pela falta de condições de habitabilidade nos centros históricos; essa, sim, uma situação a reverter.

   O que acontece em Lisboa, acontece igualmente no Porto, nalguns espaços típicos da cidade, a serem igualmente reconvertidos quase exclusivamente para a atividade turística. Mas, fundamentalmente devemos atender a perigos semelhantes que possam alargar-se a outros âmbitos de ação comunitária, seja ela económica, social ou cultural, sempre que depreciamos ou abdicamos dos nossos valores e da nossa cultura, para dar lugar ao que nos é estranho! Quando assim é, perdemos a nossa identidade e nosso interesse! É que muitos dos estrangeiros procuram-nos devido ao sol, à beleza das nossas paisagens, à nossa gastronomia… mas também devido à nossa alma, presente nos nossos elementos identitários! Se os perdermos, estaremos a comprometer-nos na nossa identidade, mas também na oferta turística que fazemos a quem nos visita.                                  
 
Pampilhosa, 13 de Julho de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(53ª Reflexão)

Partilha


PARTILHA!

   Neste último domingo, as comunidades cristãs foram chamadas a partilhar, no ofertório das celebrações eucarísticas, alguns dos seus bens monetários com os irmãos que foram vítimas dos recentes incêndios. Segundo me foi dado observar, não apenas nas comunidades que me estão confiadas, mas também noutras, de que tive conhecimento, as pessoas tomaram como sua esta causa, partilhando generosamente com quem, neste momento, carece de um pouco de tudo. Mas esta vivência da partilha, um sinal muito rico de comunhão, é apenas uma, entre tantas outras – de pessoas, de instituições, de empresas… Na verdade, foi tão grande a generosidade no imediato, após o inclemente flagelo do fogo, que as autoridades locais, dos concelhos afetados, tiveram mesmo de pedir que se abrandasse a entrega de mais bens, sobretudo perecíveis, sob pena de se estragarem; bem como de outros bens materiais, pois já não havia capacidade de armazenamento. Gestos, estes, que definem muito da nossa alma – autenticamente solidária, próxima e fraterna.

   Todavia, como escrevia o Carlos Neves, numa crónica do Correio de Coimbra (nº 4651, de 29 de Junho de 2017), fundamentado nos estudos de Susana Sacavino, a solidariedade humana compreende-se segundo quatro modelos distintos, que ele apresentava de forma gradual: a solidariedade estética, a solidariedade como campanha, como cooperação e a solidariedade como encontro. Convidando-nos a passar dos primeiros modelos, ao modelo da solidariedade como encontro, em que se relativiza “o eu que penso” e o “que me parece”, para dar lugar ao outro, num «encontro efetivo e afetivo com ele, lá no lugar onde ele está, seja o outro uma pessoa ou uma comunidade». Se é certo que, como sublinhava ainda o cronista, todos os modelos têm um contributo a dar e são importantes em contextos como aquele que vivemos, há que privilegiar o encontro, pois só este corresponde à logica mais profunda da solidariedade, em todas as suas dimensões, centrando-nos autenticamente na pessoa daqueles a quem pretendemos apoiar, acolhendo as suas verdadeiras necessidades e ajudando-os a restabelecer a sua vida numa recuperação autêntica das suas condições materiais e afetivas, num respeito singular pela sua dignidade. Sempre num apoio em que o protagonista é aquele que se encontra em necessidade.

   Estas considerações, que li com especial atenção, mais do que me terem deixado a pensar na diversidade de modelos de solidariedade e na sua eficácia, fizeram-me tomar consciência de duas coisas: a necessidade do autêntico encontro e a permanência de um apoio verdadeiramente humano.

   O encontro, em situação de carência, para além do material – absolutamente necessário! – pressupõe o afetivo, a escuta e o amparo emocional. Daí revalorizar agora, ainda mais, as palavras do pároco de Pedrogão Grande, Pe Júlio Santos, logo após aquele infortúnio: «o que mais preocupa é o estado de espírito das pessoas, a parte psicológica»; para logo acrescentar que o mais necessário na primeira hora é mesmo mostrar a proximidade com quem sofre.[1] Na verdade, é necessário reconstruir as condições materiais, para que as pessoas retomem as suas vidas e as retomem com dignidade; mas há vidas que necessitam de se reconstruir interiormente, seja pela dor da perda dos seus familiares, seja pela dor de uma vida transformada num momento. Estar com o outro e atender às suas múltiplas necessidades será, por certo, a melhor forma de viver a solidariedade. E esta faz-se sempre na proximidade.

   Por outro lado, é necessária a permanência. É que nem as condições materiais se recuperam num ápice, sendo, por vezes, longas no tempo; nem as feridas se curam no imediato. Bem sabemos que só o tempo sarará o que um momento feriu. Daí que esta proximidade afetiva também deva permanecer.

   Se nos cabe a todos tomar consciência destes factos, passíveis de serem vividos especialmente pelas pessoas e comunidades de vizinhança, importa que os meios ao nosso dispor (nomeadamente de comunicação, a que havemos de voltar) não nos permitam esquecer! Não para nos dar uma notícia fácil ou de exploração sentimental; mas para nos recordar que a solidariedade é a vivência de um encontro que não se resume apenas a algumas semanas!


Pampilhosa, 06 de Julho de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(52ª Reflexão)



[1] Pedrogão Grande. Pároco, filho da terra, preocupado com «estado de espírito» das populações. In Agência Ecclesia, 19 de Junho de 2017.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Mendigos II


MENDIGOS (II) 

   Em reflexão anterior, de há algumas semanas atrás, abordámos a questão da mendicidade, sublinhando o significado deste termo e a sua fundamentação etimológica. Afirmámos, então, que de alguma forma todos nós somos mendigos – de gestos de atenção, de amor, de presença, de reconhecimento, de vida em plenitude!...

    Se é certo que o termo mendum – como referíamos – nos reporta um limite físico, julgo que podemos alargar este âmbito para compreender que todos nós, em virtude da nossa humanidade, estamos marcados por múltiplos limites. A vida humana é um dom incomensurável; todavia, é um dom frágil! Por entre múltiplas possibilidades e sonhos, a vida humana é efetivamente frágil. Mas nós não desanimamos! Para quem tem fé, todo o limite é transitório diante da vida em plenitude: vida que contemplamos e que já recebemos, ainda que na esperança da sua plena realização futura.

   Mas, se a vida humana é marcada por estes limites - e alguns irmãos nossos experimentam-nos de sobremaneira! –, que fazer? Num mundo que tende a valorizar positivamente o indivíduo, mas depois nos projeta no individualismo, enquanto centralidade do eu, sem atenção a quem está ao nosso redor, eis que a resposta é a proximidade, a solidariedade, a comunhão, o amor.

   São tantos hoje os que vivem sós entre multidões, gente que arrasta os seus dramas e fantasmas pessoais sem terem quem os escute! Ora, em autêntica fraternidade, urge saber estar atento a quem nos rodeia, sabendo acolher e ouvir! Num tempo em que as exigências laborais retiram aos pais o tempo e a disponibilidade necessária para escutar e viver o afeto na relação com os seus filhos, urge reequacionar as prioridades, articular as várias dimensões da vida, para que não tenhamos crianças e jovens cada vez mais entregues a si mesmos e às novas tecnologias, mas a crescer sem amor! Esse amor que é essencial para o seu equilíbrio humano! Num tempo em os encargos pessoais, laborais e familiares retiram a necessária disponibilidade para os mais idosos, quantas vezes pais ou familiares diretos, tantas vezes fragilizados pela idade e pela falta de saúde, não basta que procuremos soluções estáveis de resposta às suas necessidades básicas, com o recurso – cada vez mais difícil! – às instituições de solidariedade social. Mas quando tal se manifesta necessário, não os abandonemos, pois o amor de funcionários (e há daqueles que se desdobram em afeto para com todos!) nada há como a ternura  e o amor de um filho, de uma filha, ou de um sobrinho. Mesmo quando ainda bastando-se a si próprios, não podemos descuidar os mais idosos, visitando-os, apoiando-os ou simplesmente tendo algum tempo para estar com eles, para que se quebrem tantos laços de solidão e de sensação de injustiça, pois que muitos vivem o drama de tudo ter feito para bem dos filhos, vendo-se depois esquecidos ou abandonados por estes.

   Quando, em sociedade, nos sentimos tentados a condenar alguns comportamentos, ou porque saem da norma legal, ou porque nos aparecem como estranhos e esotéricos, talvez devêssemos primeiro tornar-nos próximos e compreender o porquê desse modo de ser e de agir. Certamente no respeito pela individualidade de cada um, mas igualmente com a consciência de que há muita gente que não foi verdadeiramente amada! Há gente que, em sociedade, reclama pela negativa o que lhe foi negado – o direito básico ao amor! Há gente mal-amada, com uma baixa autoestima, que necessita mais do nosso abraço do que do nosso juízo! Enfim… são tantas as fragilidades humanas a merecerem a nossa atenção e a fazer-nos perceber que todos somos mendigos! Já nem me refiro às fatalidades, a que todos nós estamos igualmente sujeitos. Em todas as situações cabe-nos viver o cuidado de uns para com os outros. No respeito pela individualidade de cada um, mas em autêntica proximidade.

   Por fim, todos nós temos desejo de vida plena, confrontando-nos, todavia, com a morte! Consciente de que todos, no mais profundo de si, se questionam sobre o sentido da vida e a sua realização, somos mendigos do além; dessa outra realidade, que não vemos, mas que já nos está dada em esperança!

   Vivendo em cada dia o valor singular da vida, prosseguindo o ideal da felicidade, que nos é comum; todos, mais ou menos, somos mendigos! E mendigos porque frágeis! Deixemos, então, que o amor, que é efetivamente o centro construtivo de autêntica humanidade, dê rosto às nossas vidas, em verdadeira comunhão! E da eternidade tenhamos uma sede infinda que nos abra ao dom da própria fonte!


Pampilhosa, 29 de Junho de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(51ª Reflexão)