sábado, 11 de fevereiro de 2017

Sofrimento!


SOFRIMENTO

   Próximos da celebração do Dia Mundial do Doente, que, em cada ano, desde 1992, se celebra a 11 de fevereiro, por instituição do Papa João Paulo II; e no momento em que a sociedade portuguesa debate afincadamente, com argumentação oposta, a problemática da eutanásia; trazemos aqui algumas considerações sobre o sofrimento. Porque sofremos? Esta é, desde logo, a primeira e a grande questão que se nos coloca existencialmente! Responder-lhe não é, certamente, fácil; pois o sofrimento é um mistério da condição humana. Definir o sofrimento será relativamente mais simples, pois sabemos que ele «é uma vivência de ordem física, psíquica ou moral, que sobrevém ao sujeito dotado de conhecimento, pelo que constitui uma experiência profunda da sua finitude e dependência»[1]. Na verdade, a questão do sofrimento entende-se a partir da conceção mais vasta do problema do mal![2] Assim o percebemos no pensamento clássico ou na teologia bíblica. Pese embora, para os cristãos, o essencial seja a intervenção salvífica de Cristo, que, sem anular a nossa condição humana na história, marcada pelo sofrimento, nos resgata dele no mistério da Sua glorificação, que é também a nossa glorificação. Não obstante, numa perspetiva meramente racional, podemos dizer que «o sofrimento permanece uma ferida em aberto», tanto mais que os homens têm progredido mais na luta contra a dor, do que «na inteligibilidade do grande mistério do sofrimento e do mal»[3].

   Neste mistério amplo do sofrimento, podemos individualizar a dor, mediante a qual o homem experimenta a «sua incapacidade, os seus limites, a sua finitude» (CIC. 1500). Não raro, motivo de angústia, ou até de desespero, ou mesmo de revolta contra Deus (cf. CIC. 1501). Mas, noutros casos, ocasião de amadurecimento, de discernimento do que é mais importante na vida, ou mesmo ocasião de regresso à fé (cf. CIC. 1501). A dor, que é sempre um limite humano, nunca é algo que Deus queira; e jamais pode ser entendida como um castigo. A dor, como todo o sofrimento, é parte do mistério da nossa humanidade, que havemos de saber assumir e enfrentar. Sim, ainda que nenhum de nós a deseje, ela é algo de profundamente humano. Sabendo que a única forma de a enfrentar é exatamente com atitudes verdadeiramente humanas e humanizadoras. Desde logo, diante do sofrimento alheio, impõe-se-nos a proximidade – uma proximidade respeitosa, que atenda à pessoa e às suas condições; mas uma autêntica proximidade fraterna, de cura, de apoio, de ajuda e de estímulo, precisamente para que o doente não caia no desânimo.

   Para enfrentar a dor, temos hoje de continuar a investir no desenvolvimento científico, procurando novos fármacos, numa área que tem dado passos de gigante, nas últimas décadas, procurando responder às múltiplas enfermidades. Mas provendo a uma justa distribuição, que permita fazer chegar a todos os homens e povos os novos resultados dessa investigação, a preços justos e razoáveis. Depois, a proximidade médica e dos técnicos de saúde, na sua relação humana com o doente, sabendo que a dor afeta a pessoa no seu todo, e essa proximidade será certamente uma possibilidade singular de conforto. De igual modo, o círculo familiar, de amigos e de vizinhos, desempenha uma função insubstituível, não apenas minimizando as eventuais dificuldades que advêm da enfermidade, mas acompanhando com compreensão e carinho a pessoa que sofre. Sem atitudes de compaixão doentia, mas estimulando a coragem, a esperança e a vivência positiva da vida, mesmo no sofrimento.

   Num tempo em que se sobrevaloriza o prazer e a dor procura ser escondida do quadro da existência humana, havemos de humanizar a dor – lutando contra ela, minimizando-a, até ao limite do possível; mas nunca esquecendo que ela é constitutiva da nossa humanidade. Assim, lutando contra a dor, havemos de renovar sempre a humanização das nossas relações com quem se encontra em sofrimento.

  
Pampilhosa, 09 de Fevereiro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(34ª Reflexão)



[1] M. Conceição Barreira de Sousa – voc. Sofrimento. In Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Tomo IV. Lisboa: Editorial Verbo, 1992, p. 1254.
[2] Cf. Ibidem, p. 1254.
[3] Ibidem, p. 1258.

Partilha!


PARTILHA

   A palavra partilha que provém, na sua etimologia, do diminutivo de «pars» - «partícula», significa «dividir», «repartir» ou «distribuir». Ora, a partilha faz parte da nossa condição humana, desde logo porque somos seres em comunhão, vivendo em sociedade. Uma das características da nossa humanidade é exatamente essa: a de sermos homo socialis (homem social), partilhando, portanto, os nossos destinos comuns, não obstante a singularidade de cada um no seio da sociedade.

   Acontece que a nossa humanidade – na sua expressão pessoal e coletiva – se debate frequentemente entre a luta egocêntrica e a alteridade, significando esta última precisamente a relação de interação e de dependência com o outro. A alteridade pressupõe que eu tenha esse sentido do próximo, assuma para com ele um compromisso e me sinta dependente dele. Ora, um dos elementos da nossa vivência humana onde mais se expressa o egocentrismo (essa centralidade do eu e dos meus interesses, sem contar com os demais) é precisamente na relação com os bens materiais. Se, nos inícios da humanidade, o homem só possuía aquilo que todos recolhiam em conjunto, como fonte de subsistência comum; com o seu desenvolvimento e particularmente com a sua sedentarização, o homem tendeu sempre, cada vez mais, a tornar-se possuidor de uma parte dos bens; ao ponto de, no decurso da história, alguns serem privados de bens em favor de outros. Ou, mais grave ainda: alguns tornaram-se bens materiais para outros. Ultrapassadas essas vicissitudes da história, continuamos na demanda da justiça, que significa dar a cada um o que lhe é devido. Mas estamos longe deste desígnio humano e da finalidade dos bens criados. Na sua doutrina, a Igreja sublinha a universalidade dos bens, ao afirmar: «Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade. Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a este destino universal de bens» (GS. 69).

   Acontece que, hodiernamente, a posse dos bens não se esgota no que se acumula, mas fundamentalmente, no respeito pelos direitos mais básicos de toda a pessoa – o direito à alimentação, ao alojamento, à saúde, à educação, à comunicação, à justiça, entre outros.

   Contudo, como se não bastasse a epidemia da fome em vários países africanos e orientais, a falta de acesso a quase todos os bens básicos para a subsistência e vida digna de cada ser humano, que, nessas paragens, se prolonga na história, como sinal evidente do desequilíbrio e egoísmo humanos; confrontamo-nos hoje com novos pobres: as vítimas da guerra, que perdem tudo e procuram refúgio em países onde possam viver com um mínimo de dignidade.

   Todavia, na hora presente da história, o mundo mais rico parece reagir ao contrário: negar, a quem tem necessidade, o básico para que possa viver. Tendência que se iniciou a leste da Europa e parece acentuar-se agora, na extensão a outros países e continentes. A impressão é a de que hoje muitos países tendem a fechar-se, deixando entregues à sua sorte os mais desprotegidos e vulneráveis.

   Este egocentrismo tende ainda a estender-se também às nossas cidades, vilas e aldeias, onde cada um parece entregar-se apenas aos seus interesses pessoais, despreocupando-se com a sorte dos que vivem junto de si e com o serviço do bem comum.

   Ora, necessitamos de redescobrir o sentido da partilha. Não numa atitude assente meramente num certo voluntarismo pessoal; mas sim na perspetiva de uma renovada humanização e de uma autêntica justiça.

   A partilha une-nos, torna-nos próximos, corresponsáveis pelos destinos uns dos outros. Mas, sobretudo, a partilha humaniza-nos, pois como seres sociais que somos, ela traduz um dos traços fundamentais da nossa identidade humana.

  

Pampilhosa, 02 de Fevereiro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(33ª Reflexão)

 

Laicidade inclusiva!


LAICIDADE INCLUSIVA

   Um dia depois de termos terminado, como em cada ano, a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos – semana que decorreu de 18 a 25 de Janeiro -, e que levou várias Igrejas Cristãs a reunirem-se para pedirem, em conjunto, esta unidade, fortalecendo entre si os laços de maior comunhão, em autêntico espírito ecuménico; e ainda a poucos dias da entrevista, dada ao Jornal Público (18.01.2017), por José Vera Jardim, Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, em Portugal, entrevista concedida precisamente no início desta Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos; retenho aqui duas notas relativas à liberdade religiosa em Portugal. A primeira é do próprio Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa que, aquando da sua tomada de posse, afirmou, com clareza, que nunca teve, nem tem, uma «agenda laicista», pretendendo mover-se essencialmente por um princípio fundamental, na relação com as diversas Igrejas: «a não-discriminação». Princípio claramente ressalvado, a quatro meses de distância do início das suas funções, com bastante moderação, na entrevista concedida, mesmo nos questionamentos e possibilidades que ali deixa em aberto. Por seu turno, a Ministra da Justiça, aquando da tomada de posse deste novo responsável da Comissão da Liberdade Religiosa, em 05 Setembro de 2016, afirmava que reconhecia a importância deste organismo para a manutenção da «paz social», num momento de «renascimento religioso», considerando que, em Portugal, se vive uma «laicidade inclusiva».

   Ora a laicidade define-se como um princípio institucional dos Estados democráticos, separando as funções do Estado das funções das Religiões. Isto é, assume-se uma separação de competências, não exercendo o Estado qualquer poder religioso, nem as Igrejas qualquer poder político. Ao contrário do que alguns possam pensar, esta posição institucional beneficia o Estado e as Igrejas, mantendo-se uma relação de cooperação, mas não de interferência nas competências de cada um.

   Portugal tem sido, neste sentido, bastante moderado – não obstante alguns laivos de laicismo puro, de alguns quadrantes políticos e sociais – se comparado com a maioria dos países europeus. Na verdade, um pouco por toda a Europa, com o seu epicentro em França, grassa um laicismo radical, que, enquanto prática da laicidade, assume uma forte hostilidade ao fenómeno religioso, bem como às práticas desta natureza, pretendendo encerrá-las na esfera do privado. Ora, isto atenta contra os direitos humanos que, na sua Carta Internacional, salvaguarda que «toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião» (art. 18º), bem como contra uma boa parte das Constituições Republicanas que, como a Portuguesa, sublinham que o direito à «liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável» (Constituição da República Portuguesa, Art. 41º, nº 1).

   Entre nós persiste esta «laicidade inclusiva», que respeitando as competências do Estado e das Igrejas, ressalva o direito das pessoas, bem como o reconhecimento humano, social e cultural das diversas Igrejas e a sua possibilidade de expressão. Aqui se insere também a Igreja Católica, não obstante a consideração da representatividade social de cada uma das Igrejas. Esta «laicidade inclusiva» é uma exigência própria dos direitos da pessoa e da sociedade, pois a religião e a vivência da fé são também elementos estruturantes das sociedades e da sua cultura.

   Neste sentido, com razão afirma a Lei da Liberdade Religiosa, decretada pelo Parlamento Português, com data de 22 de Junho de 2001: «O Estado cooperará com as Igrejas e as comunidades religiosas radicadas em Portugal, tendo em consideração a sua representatividade, com vista designadamente à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoa e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância» (Art. 5º).
 

Pampilhosa, 26 de Janeiro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(32ª Reflexão)