terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Natal!


 NATAL  

    Estamos em tempo de Natal! Expressão, que provinda do latim natalis, significa nascimento. Ora, o Natal significa o nascimento de Jesus, o Filho de Deus que se fez homem no meio de nós! Ainda que alguns possam não se rever nos conteúdos da fé, o Natal comporta, contudo, dois elementos incontornáveis para todos nós: a realidade histórica de Jesus de Nazaré e o seu nascimento, ainda que o dia de Natal seja definido a partir da conceção do nascimento do sol invicto (natalis invicti solis), da mitologia romana e sua expressão religiosa, que os cristãos, posteriormente, converteram na data do nascimento de Jesus Salvador, como autêntico sol que ilumina toda a humanidade; e a identidade cultural do Natal, que provém precisamente da tradição cristã.

   Em abono da verdade e já longe das práticas mitológicas romanas, o Natal celebra sempre o nascimento de Jesus, Aquele que depois proclamamos o Cristo, em virtude da Sua Morte e Ressurreição.

   Todavia, desde meados do século XX, após a campanha economicamente agressiva da americana Coca-Cola, que, em 1931, transformou a lenda de São Nicolau, que se celebrava a 6 de Dezembro, com a habitual distribuição de presentes, no atual Pai Natal - essa figura de aspeto rechonchudo, simpática, de barbas brancas e vestido de vermelho, a cor da marca -, que tal figura veio a assumir protagonismo nas celebrações natalícias.

   De um modo particular, o Pai Natal é uma figura atrativa para as crianças, precisamente porque a sua principal missão, em cada ano, é distribuir presentes, o que o torna particularmente cativante.

   Ora, o Natal compreende hodiernamente duas figuras: a do Menino Jesus e a do Pai Natal. Inequivocamente, com presença e expressão bem distintas no nosso contexto social. O Pai Natal é servido por um poderoso império comercial, aliado aos ainda mais poderosos meios de comunicação social, capazes de mobilizar uma sociedade inteira em torno de uma figura comum, definindo assim o sentido desta quadra festiva.

   O Menino Jesus parece continuar a nascer escondido, na humildade da gruta de Belém. O seu lugar, hoje, continua a ser o das nossas Igrejas e o espaço íntimo de algumas famílias cristãs. Não obstante se celebre o Seu nascimento.

   Mais do que colocar em confronto duas figuras, ou, de alguma forma, pretender excluir qualquer vivência do Natal, sinto que necessitamos de repor a verdade desta quadra natalícia. Não apenas para fazer justiça ao Menino; mas para que a nossa vida humana não seja apenas condicionada – diria mesmo: subjugada – pelos interesses económicos. É que os grandes valores do Natal têm de estar para além dessa tentativa de comercialização da vida humana, radicada nas compras, nas ofertas e nos gastos. O Natal, assente na humildade do Deus feito Menino, convida-nos à solidariedade, ao amor, à ternura, ao reconhecimento da dignidade do outro, à partilha generosa, ao encontro e à fraternidade, realizando os ideais humanos mais profundos, os únicos que são capazes de nos humanizar. Sim, porque o Natal é humanização: não apenas de Deus que se faz homem, mas igualmente do homem que O reconhece no rosto humano dos outros.

    Além disso, só no Deus Menino ganha sentido a vida humana, na pobreza e na abundância, na saúde e na doença, na alegria e na dor!... Nessa vida tão bem retratada pelo conto de Eça de Queirós, O Suave Milagre, que nos coloca diante de uma criança pobre e doente que deseja ver Jesus. E quando a mãe tenta dissuadi-lo, por ser pobre, eis que Jesus o visita. Este suave milagre é uma interpelação e uma resposta à vida de cada um de nós, em tempo de Natal! No sentido de vivermos a mesma consolação daquela criança. Escreve Eça de Queirós: «De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou: - Mãe, eu queria ver Jesus… E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: - Aqui estou!».

 
Pampilhosa, 22 de Dezembro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(27ª Reflexão)

 

 

Solidão!


SOLIDÃO
 
   A solidão é uma das vivências mais dolorosas da existência humana. Ver-se privado da relação com o outro, ou com os outros, e obrigado a um isolamento na própria intimidade, física ou emocional, sem interação com os demais, é sempre uma vivência perturbadora para as pessoas que o experimentam.

   Não obstante as múltiplas formas de comunicação, de que hoje dispomos, o encontro com o outro exige uma presença real; o olhar, olhos nos olhos; o abraço, em que se expressa fisicamente o afeto; uma presença pessoal, que possibilite a relação humana em verdadeira alteridade.

   É certo que existe também uma «solidão positiva» - assim denominada por vários autores -, que permite o encontro consigo mesmo, a criatividade, o aprofundamento intelectual, espiritual, ou existencial. Contudo, resultante de uma opção livre e, em regra, limitada no tempo; compensada, depois, pelo reencontro com os mais próximos, em família ou em comunidade.

   Na verdade – como refere o adágio popular - «ninguém é feliz sozinho», pois é na relação com os outros que nos descobrimos permanentemente e nos construímos como pessoas, em desenvolvimento autenticamente humano.

   Ora, a solidão toma hoje vários rostos! A solidão física, de quem vive isolado, não raro devido às limitações da mobilidade e abandono, particularmente entre os mais idosos. Depois, a solidão afetiva: de tantos que não se sentem acolhidos; aceites na sua diversidade; amados; ou encerrados em si, nos seus dramas pessoais, sem capacidade de abertura confiante a quem os rodeia, vivendo a sua identidade mais profunda num reduto interior, inexpugnável e de solidão. Por fim, a solidão social, hoje cada vez mais disseminada, seja pela fixação nas tecnologias que isolam as pessoas, em espaços públicos; seja pelo individualismo, que tende a fechar cada pessoa no seu mundo e nos seus interesses; ou ainda, pela imposição social de isolamento àqueles que não são amados comunitariamente, fruto das suas vivências humanas perturbadas por qualquer fatalidade.

   A solidão, esse limite humano, fonte de dor e de angústia, exige, de todos nós, uma nova humanidade e uma nova proximidade; que, em muitos casos, é expressão de justiça e de dever. Exige essencialmente uma nova fraternidade!

   Desde logo, necessitamos de redescobrir os valores familiares, não permitindo que os mais velhos sejam privados dos mais novos e das relações que lhe são devidas! É uma questão de justiça! Depois, a necessidade de aprofundarmos o valor do voluntariado, na ação de visitadores, ou mesmo no acompanhamento próximo de pessoas mais desprotegidas. Sinal muito positivo é o dos jovens estudantes que habitam com idosos, beneficiando, cada um, do que ou outro pode oferecer – a hospedagem e a companhia; criando-se, quantas vezes, laços profundos de familiaridade. As próprias comunidades hão-de promover e dinamizar novos centros de convívio e de encontro, onde se viva a comunhão entre as pessoas e o seu enriquecimento humano.

   Por outro lado, todos nós devemos aprender a viver permanentemente o grande dom do acolhimento, da aceitação do outro, na sua identidade e diferença, no respeito pela sua verdade mais íntima. As amizades, sinceras e fiáveis, hão-de permitir a expressão autêntica daqueles que nos são queridos, abrindo-os à sinceridade diante de nós, por que se sabem amados. Todos nós devemos cultivar gestos de ternura para com todos, quebrando tantos respeitos humanos e receios, que ainda nos habitam. Precisamos de redescobrir a relação interpessoal, marcada pelo encontro efetivo e não meramente virtual que, quantas vezes, é ilusório. Necessitamos de quebrar as regras, que se impõem tacitamente, do isolamento em público, para gerarmos novas interações entre pessoas, geradoras de uma nova e autêntica humanidade. Necessitamos de reaprender o acolhimento para com todos e, muito especialmente, para com aqueles que ninguém ama, na consciência de que o isolamento e o alheamento geram mais problemas humanos e sociais, do que o acolhimento sincero. Precisamos de quem ame famílias ou pessoas, vítimas de situações humanas difíceis ou dolorosas, ajudando-as a recuperar a alegria e a dignidade!

   Um ideal? Sim, um ideal! Mas um ideal realizável, se cada um de nós o abraçar! É que só o amor, feito gesto de ternura e de acolhimento, é capaz de nos humanizar!

Pampilhosa, 15 de Dezembro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(26ª Reflexão)

 

Reconciliação!


RECONCILIAÇÃO


   A Igreja encerrou universalmente, no passado domingo, Solenidade Cristo Rei e Senhor do Universo, o Ano Santo da Misericórdia. O final, para a Igreja Católica, de um período cronológico de uma especial vivência da misericórdia, nas suas dimensões teológica, espiritual e pastoral. Mas um ano igualmente acolhido, com entusiasmo, por outras Igrejas e homens e mulheres de boa vontade. Um encerramento que não significa, contudo, o términus de um espírito que há-de permanecer na vivência eclesial, agora aprofundado, pois, segundo as palavras do Papa Francisco, na sua Carta Apostólica Misericordia et Misera, com que encerrou este ano, «a misericórdia não se pode reduzir a um parêntesis na vida da Igreja, mas constitui a sua própria existência, que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho» (nº 1).

   Também as comunidades paroquiais que me estão confiadas – Luso e Pampilhosa – depois de haverem iniciado este ano com uma obra de misericórdia corporal: «dar de comer a quem tem fome»; quiseram terminá-lo com uma obra de misericórdia espiritual: «perdoar as injúrias». Assim, toda a nossa reflexão e ação, no encerramento do Ano da Misericórdia, se centrou no imenso valor da reconciliação. Sabendo que esta constitui a base de uma vivência de tranquilidade, de autêntica paz e de verdadeira fraternidade. Pretendendo comprometer-nos em criar comunidades de irmãos, comunidades de amor, na alegria da sincera comunhão. Sabendo, todavia, que o caminho exige uma atenção contínua e um esforço permanente de superação das nossas divisões.

   Mas este convite não se limita às comunidades cristãs. Bem pelo contrário: é uma proposta de vida que compreende todas as relações em sociedade – as de maior proximidade, ou de menor proximidade!

   Na verdade, quantas vezes nos confrontamos com pessoas angustiadas, tristes, desalentadas, deprimidas, de semblante anuviado, fruto de relações humanas degradadas pelos ódios, rancores, más querenças, ciúmes ou mesmo vinganças? Pessoas que se ignoram ou rejeitam, mesmo quando têm de partilhar espaços próximos, quantas vezes de vizinhança, na mesma rua ou no mesmo prédio! As nossas relações humanas enfermam devido à incapacidade de diálogo, à inaceitação do modo de ser e de agir dos outros, às nossas suscetibilidades, à arrogância, ao orgulho, à luta de interesses, não raro entre familiares, por razões de preferências, de divisão de bens, que conduzem, quantas vezes, a ódios e divisões, onde, afinal, deveria persistir a ternura e o amor! Quantas vezes colegas de trabalho se ignoram, mesmo trabalhando lado a lado? Enfim… São múltiplas as realidades que estão na base dos nossos desencontros e deterioração das nossas relações humanas!

   Contudo, todos desejamos viver em paz, na tranquilidade, na ternura, no reconhecimento e na aceitação. Todos desejamos ser felizes, sabendo que estar de bem com os demais é ingrediente fundamental para essa felicidade! Assim, não obstante as realidades humanas que nos possam dividir, a grandeza da vida humana reconhece-se na capacidade de ultrapassar todas essas dificuldades, permitindo-nos viver relações positivas, marcadas pela tranquilidade e pela paz. Sabendo que, para tanto, necessitamos de abdicar das nossas atitudes de orgulho e de vingança, para, com um coração límpido, trilharmos caminhos de diálogo e de compreensão, de perdão e de reencontro, conducentes à verdadeira comunhão com os demais – próximos ou mais distantes! Necessitamos de reaprender, permanentemente, o valor da reconciliação! Que na expressão latina – reconciliare – significa precisamente «pacificar, juntar de novo, restabelecer a concórdia e as boas relações»! Necessitamos de homens e mulheres reconciliados, construtores de comunidades fraternas, de acolhimento, de amor e de paz. Sabendo, contudo, que todas estes valores nascem do coração e do agir de cada um de nós!

   Como se referia numa pequena folha que distribuíamos, a propósito do encerramento do Ano da Misericórdia, «o perdão não é sinónimo de fraqueza ou ausência de amor-próprio; pelo contrário, demonstra grandeza de alma e muita coragem!» E é disto que precisamos: de homens e mulheres corajosos, capazes de trilhar todos os caminhos que conduzam à paz; pois a guerra, ao invés do que se possa pensar, é a arma dos fracos, já que apenas no amor se reconhece a verdadeira humanidade!


Pampilhosa, 24 de Novembro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(25ª Reflexão)

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Proximidade!


PROXIMIDADE


   Na passada semana fui tocado por dois acontecimentos ligados ao mundo da música: a partida de Leonard Cohen, que nos deixa um imenso legado, e a oração a Nossa Senhora, de Eric Clapton, composta num momento de profunda angústia, ou mesmo de desespero do seu autor. Retenho aqui, mais do que quaisquer outras questões ligadas ao génio destes dois homens, duas histórias de vida, que partilharam connosco. Leonard Cohen, no seu discurso aquando da receção do prémio Príncipe das Astúrias, em 2011, fez memória do seu professor de guitarra, que lhe ensinou os primeiros seis acordes, sobre os quais – dizia! – construiu toda a sua música, sem que quase nada soubesse dele, senão simplesmente que era um cidadão espanhol! Quando, num certo dia, o professor não apareceu para a aula particular que lhe lecionava, como era hábito, Cohen contactou a pensão onde se hospedava e confrontou-se com o choque enorme da notícia do suicídio do seu mestre de guitarra. Concluía que devia muito a Espanha, pois havia sido um espanhol a ensinar-lhe os primeiros acordes de guitarra. Mas deixava implícita a mensagem, de um modo subliminar, que, afinal, beneficiou dos conhecimentos de um professor que, verdadeiramente, nunca chegou a conhecer.

  Por seu turno, Eric Clapton, na sua autobiografia, relata um momento de particular angústia e sofrimento, quando, na tentativa de recuperar da dependência de drogas, em 1987, numa certa noite apenas lhe restou contar com o apoio de Nossa Senhora, a quem dedicaria uma melodia excecional: «Holy Mother» (Mãe Divina), que, mais não é, senão um enorme grito de súplica e de pedido de auxílio.

   Estes dois relatos, de músicos ímpares, cada um segundo o seu estilo, mas universalmente conhecidos e aplaudidos, fizeram-me pensar na solidão e na angústia de tantos que, não obstante a fama e o sucesso, vivem uma infinita solidão interior, quantas vezes conducentes ao limite de se privarem da própria vida. E pensava, ainda, que tal realidade é transversal a toda a sociedade, na qual tantos aparecem com a aura de homens e mulheres de sucesso e que, afinal, vivem vidas marcadas por uma imensa infelicidade e solidão! Ou ainda naquelas pessoas que, à nossa volta, aparentemente felizes e realizadas, vivem uma solidão semelhante! É que «nem tudo é o que parece», segundo o adágio popular! Que fazer, então? Como podemos contribuir para reverter tais situações? Não tenho dúvidas: todos nós necessitamos de sair, cada vez mais, de nós mesmos e criar uma maior proximidade com os outros; criar autênticos laços de afeto e de comunhão! Não numa proximidade invasiva, que desrespeite o direito à individualidade e à legítima privacidade – por vezes tão maltratada por quem se faz próximo, mas não é verdadeiramente amigo! -; mas uma proximidade afetiva, disponível, fiável, capaz de permitir a cada um, num momento de solidão, de angústia ou de profunda tristeza, a possibilidade de encontrar um ombro amigo, que sirva de apoio, e um coração disponível, capaz de ajudar a reencontrar caminhos! Necessitamos de maior comunhão, afeto e proximidade, refazendo as nossas relações humanas, sejam elas de amizade ou simplesmente sociais. Necessitamos de cuidar uns dos outros, na consciência de que ninguém – absolutamente ninguém! – é uma ilha isolada! Precisamos de escancarar, com sinceridade, as portas do nosso coração e as nossas mãos amigas para que o outro, sempre que sinta necessidade, se abeire de nós com confiança.

   A história daquele professor e a solidão de Clapton são uma espécie de grito, a interpelar-nos no sentido de construirmos um mundo mais fraterno, de mais afeto e de maior disponibilidade para com aqueles que estão ao nosso lado; que caminham nas nossas ruas, que vivem nos nossos prédios, ou que, inclusive, frequentam as nossas casas! Que nenhum de nós tenha de concluir, em circunstância alguma, como referia Cohen: «eu não sabia nada daquele homem», mesmo partilhando com esse homem algo de tão significativo para a sua vida. Cohen deixa-nos um lamento, que bem pode ser um gesto profético para os tempos que vivemos!

 
Pampilhosa, 17 de Novembro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(24ª Reflexão)

 

Superação!


SUPERAÇÃO
 

   Uma das riquezas da humanidade é a singularidade de cada um dos seus membros. Nenhum de nós se repete, pesem embora as semelhanças físicas que nos possam aproximar desta ou daquela pessoa. E, sendo assim do ponto de vista físico, tal singularidade determina-nos também do ponto de vista da personalidade. Cada um de nós é, efetivamente, uma riqueza singular, irrepetível, única!

   Existem, contudo, traços característicos que nos podem aproximar, tanto física como psiquicamente, a que a psicologia chama «biotipos»: os pícnicos, os atléticos e os leptossómicos, com características físicas e psíquicas determinadas. Mas, sem nos determos nestas classificações, concordaremos que, não raro, nos podemos agrupar nalguns tipos de temperamento, expressos no modo como entendemos e vivemos a nossa existência pessoal: alguns de nós mais otimistas; outros mais pessimistas; e outros, ainda, particularmente realistas. Certo é que, sejam quais forem as nossas características, todos temos um desejo comum: sermos felizes!

    Ora, tal desejo profundo, que engloba e orienta as nossas vidas, é particularmente condicionado por essas características pessoais: se para um otimista cada ocasião vivida é entendida como uma oportunidade, mesmo as mais difíceis e penosas; já para um pessimista muitas das suas vivências são entendidas como uma provação, marcadas pelo peso, pela inquietação e, não raro, pelo desânimo. Enquanto um realista, por seu turno, tende a olhar para os factos com alguma racionalidade e enfrentá-los nessa perspetiva racional, por vezes até mesmo com alguma frieza ou distanciamento emocional.

   Assim sendo, e na perspetiva da felicidade, nem todos partimos da mesma linha: se uns, pelas suas características pessoais, têm a corrida mais facilitada; outros necessitam de maior superação de si, para atingir as mesmas metas existenciais. Assim, a estes últimos exige-se-lhes essa capacidade maior de superação, enquanto esforço para ultrapassar as dificuldades ou perspetivas de vida, colhendo, então, o que esta de melhor tem para lhes oferecer.

   Certo é que não existem categorias perfeitas, pelo que todos necessitamos de nos superar permanentemente, relativizando o que a vida comporta de negativo, para nos deixarmos iluminar permanentemente pelo que esta nos oferece enquanto possibilidades. É, no fundo, a história do ponto negro na folha branca: quantas vezes nos debruçamos exclusivamente no ponto negro, que é mínimo no espaço de uma folha branca, e esquecemos a própria folha branca, com todas as possibilidades oferecidas à nossa criatividade de escrita. Assim é a nossa vida: quantas vezes nos centramos excessivamente nos nossos problemas e dificuldades, em vez de nos preocuparmos em reter da vida tudo quanto de bom ela nos oferece?!... Sabendo, contudo, que esta última atitude é que pressupõe a verdadeira sabedoria e é fonte de felicidade!

   Sempre admirei as pessoas que, sendo vítimas de problemas humanos graves, procuraram, ou procuram, o lado mais belo da existência! Por vezes com a consciência de uma vida curta, mas na opção de aproveitar o tempo que lhes é dado viver, mais do que lamentando aquele de que não poderão usufruir; privilegiando o que se tem, mais do que aquele que se poderia ter! Gestos e exemplos de um enorme significado humano e de uma imensa sabedoria!

   Com maiores ou menores dificuldades existenciais, todos nós temos de aprender a arte da superação, no sentido de nos recentrarmos permanentemente nas oportunidades da vida, oferecidas em cada dia, no intuito de colhermos o que de melhor nos é dado viver! Dependendo sempre do nosso olhar e da nossa capacidade de privilegiar o que nos constrói. Fazendo dessa vida uma realidade gozosa, que valha a pena ser vivida!

   Necessitamos, permanentemente, de colher os frutos belos da existência, para que o seu sabor nos dê o suave paladar da felicidade. Nas coisas maiores de cada dia, ou naquelas que nos parecem mais insignificantes!

   Se para uns é mais fácil tal percurso, enquanto para outros mais exigente, certo é que todos temos capacidade de aproveitar o tempo que nos é dado viver enquanto oportunidade de realização. É que, parafraseando Enéas, nenhum de nós quer apenas uma vida com final feliz, mas sim uma vida inteira preenchida pela felicidade!


Pampilhosa, 10 de Novembro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(23ª Reflexão)

Morte e Ressurreição!


 MORTE E RESSURREIÇÃO


   Acabámos de entrar na denominada hora de inverno, que privilegia a luz do amanhecer, em detrimento de um prolongamento maior da presença da luz na hora do anoitecer. De igual modo, este período do ano, até ao solstício de inverno, em dezembro, é ainda especialmente marcado por uma natural e progressiva ausência de luz, com o consequente aumento, mais prolongado, do tempo noturno. Um período do ano que nos remete para a sensação de trevas e de escuridão.

   Por outro lado, iniciámos o mês de novembro recordando os nossos entes queridos que, num tempo mais próximo ou mais distante, já partiram, cruzando o limiar da morte. Assim, também esta época, e especialmente este início de novembro, parece ser um tempo triste, na recordação da morte – recordação de quem partiu e consciência de que este limiar é transversal à história de todos nós. Esta memória é ainda igualmente vivida quando a própria natureza parece, também ela, querer adormecer nesse sono de morte, pois o inverno, que se aproxima, caracteriza-se precisamente pela ausência do vigor de outras estações e sua respetiva vitalidade!

   Morte, trevas e escuridão poderiam entender-se como uma espécie de caldo único a alimentar a nossa tristeza e desalento, num tempo revestido de tristeza e de uma espécie de finitude. É verdade que o tempo prefigura a nossa história humana e o inverno seria o tempo da velhice. Por contraste – como tantas vezes fazemos significar – com a primavera da vida, símbolo da juventude.

   Mas se este período do ano se reveste de alguns destes traços, desejados por uns e desagradáveis para outros, sabemos bem que cada estação prepara sempre aquela que se lhe segue! Assim, o inverno, com os seus rigores próprios, é essencial para que na primavera brote pujante a vida; para que tudo rejuvenesça e da terra brote abundante, luxuriante e vigorosa a natureza, num ciclo permanente de renovação.

   Também assim na nossa vida: na contagem do tempo, no acumular de estações e quando o inverno da existência se aproxima, a atitude não pode ser de tristeza e de solidão! A cada estação da vida, sucede outra estação; e após o inverno da existência abre-se-nos o vigor de uma nova primavera! Se na brevidade da vida contemplamos as múltiplas estações, o inverno não será a última, de uma finitude sem fim, de qualquer solidão ou tristeza! O inverno da existência é o tempo fecundo, das sementes adormecidas, que prepara uma nova pujança e uma outra existência que há-de brotar em todo o seu esplendor! E, então, como as estações do ano, que se entendem na sua inter-relação, também as estações da vida se compreendem à luz de uma permanente existência, mesmo tendo de se cruzar o umbral da morte! Sim, esse inverno existencial que nos abre à eterna primavera! Á vida! Que não se esgota numa fase da existência, mas se renova até à sua plenitude!

   Este tempo, com as suas características naturais, sociais e religiosas, tem a virtualidade de nos colocar face a face com uma das perguntas mais candente, que a todos habita: que sentido tem a vida? Qual o meu futuro?

   Para quem não perfilha a fé cristã, este pode ser um tempo oportuno para refletir a existência pessoal por comparação com a natureza e os seus ciclos, procurando descortinar neles um sentido para a vida! Para outros – que hoje tendem a viver um sincretismo religioso e de pensamento – a vida seria um eterno retorno, nos ciclos contínuos de purificação, até atingir a sua comunhão plena com o cosmos, num estado de graça e de paz absolutos. Todavia,  já sem qualquer identidade pessoal.

   Para mim, e para todos os que perfilham a fé cristã, o enigma das estações da vida foi descodificado por Aquele que se fez um de nós, que passou o limiar da morte e que agora vive ressuscitado! Aquele que permanentemente nos afirma: «Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em Mim, ainda que morra viverá. E quem vive e crê em Mim jamais morrerá» (Jo. 11, 25 – 26). Aquele de quem Paulo afirma que ressuscitou dos mortos como «primícias dos que adormeceram» (cf. 1Cor. 15, 20).

   Seja qual for a convicção de cada um, este é um tempo oportuno para respondermos honestamente às dúvidas que nos habitam, ou para aprofundarmos a consciência da esperança que nos anima. Um convite neste tempo de trevas aparentes, que, não obstante, traz no seu seio, como sementes, os raios esplendorosos duma incessante Luz!

Pampilhosa, 03 de Novembro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(22ª Reflexão)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Vida por Vida!


VIDA POR VIDA


   A Associação Humanitária dos Bombeiros da Pampilhosa está a celebrar, neste ano de 2016, o seu nonagésimo aniversário; assinalado, no passado dia 16 de Outubro, em cerimónia solene. São noventa anos de serviço abnegado às comunidades locais – à Pampilhosa, às demais comunidades concelhias e às necessidades de âmbito nacional, em cooperação com as demais Associações de Bombeiros.

   Para além desta efeméride, que me leva, uma vez mais, a felicitar a nossa corporação de Bombeiros, gostaria de sublinhar duas notas essenciais que definem e enquadram a ação da maior parte das Corporações de Bombeiros do nosso país: o seu lema e a sua condição de voluntários!

   O lema - «Vida por Vida» - expressa bem a natureza do seu serviço: uma entrega, de corpo e alma, na proteção das pessoas e dos seus bens. Se é certo que um lema traduz um ideal de vida, não é menos certo que os bombeiros – homens e mulheres abnegados – o realizam com profunda dedicação, quantas vezes pondo em risco as suas próprias vidas. Com frequência, na ânsia dessa salvaguarda, na proteção de pessoas e bens, o ideal torna-se mesmo realidade, levando a que algumas vidas se salvem, à custa do sacrifício de outras. Bastaria recordarmos o World Trade Center, aquando dos atentados de 2001, nos EUA: apesar da consciência do perigo, os bombeiros não hesitaram em avançar para a sua missão. Ficando, muitos deles, sob os escombros daqueles monstros de cimento e ferro!

   Mas o ideal «Vida por Vida» não deve entender-se como um sacrifício extremo de tal nível! Deverá providenciar-se, ao invés, que, na sua ação, os bombeiros vejam sempre salvaguardada a sua integridade pessoal. Daí a justa reclamação, de algumas corporações, no sentido de que lhes sejam garantidas condições materiais de trabalho.

   O ideal «Vida por Vida» vive-se cada dia, na capacidade permanente de abnegação, de inteira disponibilidade para qualquer emergência, na capacidade de deixar tudo por causa do bem do outro, em autêntica atitude de amor ao próximo! Sim: amor ao próximo! Seja aquele que o realiza crente ou não crente, perfilhe este ou aquele credo religioso, ou porventura nenhum, ou se reveja, ainda, em ideais distintos de qualquer compromisso religioso. É que o amor não tem fronteiras – religiosas, ideológicas ou institucionais. O amor realiza-se sempre que alguém serve o outro, com a sua total disponibilidade, de tal modo que o bem alheio se transforma no seu próprio bem e na sua alegria! Tal vivência traduz sempre o que há de mais nobre no coração e no agir humano. E os bombeiros, fiéis ao seu lema, realizam permanentemente gestos sublimes de amor, atendendo às necessidades dos seus concidadãos, particularmente em situações de fragilidade, debilidade ou de perigo. Volvidas as exigências do verão, receio que a ação dos bombeiros regresse a um certo alheamento das populações. Quando, na verdade, a sua ação – que é diária! – vai muito além do combate aos incêndios! Os nossos bombeiros merecem, pois, o reconhecimento contínuo das suas comunidades, não num permanente aplauso, que dispensam, mas no carinho que lhes é devido, no reconhecimento das ações nobres que realizam e no apoio que lhes possamos dar, ainda que com gestos simples de proximidade.

   Releve-se, por outro lado, que uma grande parte dos nossos bombeiros são efetivos voluntários! Entre gente mais jovem e menos jovem (felizmente que os jovens são uma presença evidente nas corporações, sinal que o ideal permanece e mobiliza!), muitos são os que compaginam esta disponibilidade com o seu trabalho profissional, a família e mesmo a convivência social, prontos a deixar tudo à chamada, para corresponder à missão que se lhes confia. Sinal ainda maior dessa vivência nobre de serviço aos outros, pois nada mais esperam em troca, senão o bem daqueles que são chamados a servir.

   Se os bombeiros são, em si e pela sua ação, merecedores do nosso reconhecimento; são, de igual modo, uma permanente interpelação à nossa consciência pessoal, comunitária e social, no sentido de cultivarmos, entre todos nós, o que na humanidade há de mais nobre – o cuidado de uns para com os outros. Numa sociedade que tende a acentuar o individualismo, o seu ideal e a sua vivência interpelam-nos a sairmos de nós mesmos e, em pequenos gestos, a vivermos o que há de mais autenticamente humano! Sabendo que o amor de uns para com os outros será sempre o ideal maior!

Pampilhosa, 27 de Outubro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(21ª Reflexão)

terça-feira, 25 de outubro de 2016

A Vitalidade da Esperança!


A VITALIDADE DA ESPERANÇA


   Após o terrível incêndio que, em Agosto passado, lavrou por estas terras Bairradinas, e mesmo ainda antes da época das chuvas, deslocando-me, há dias, pela estrada nacional, em direção à Mealhada, constatava como, por entre as árvores queimadas e um chão de cinza, surgem já alguns tímidos sinais de verdura, prometendo uma nova vida àqueles espaços negros e tristes, onde o fogo tudo transformou em morte aparente. São os fetos que começam a brotar; os rebentos de eucalipto que despontam – não obstante a preocupação dos silvicultores, porque nocivos à reflorestação desejada; o despertar de matos e outras plantas endémicas, que começam a querer surgir!... Como que deixando adivinhar uma natureza vigorosa, capaz de se reinventar e de redimir um passado próximo de grande destruição.

   Ao passar por ali e ao reparar nestes indícios de nova vida, vinha-me à mente a perceção de que estes ténues sinais de recomposição são como que uma bela metáfora a iluminar algumas situações da nossa vida humana: confrontados, quantas vezes, com dramas pessoais ou familiares, de naturezas tão diversas, criamos a noção, por momentos, de que a vida desaba, desfazendo-se em negras cinzas, onde apenas resta a tristeza e a total desolação. Face ao fracasso, à angústia, à dor, ou, especialmente, à possibilidade da morte, a vida como que se desfaz num campo de cinzas, onde todo o vigor e pujança é substituído pela tristeza de uma paisagem escura e sem vida. Essa paisagem interior, espelhada num rosto fechado, de preocupação, de lágrimas, ou de angústia!...

   Se são mais que legítimos tais sentimentos, face às múltiplas formas de dor e à evidência dos limites humanos; também não é menos certo que, não raro, em tais circunstâncias, nos deixamos agrilhoar pelo momento presente, sem almejar um qualquer outro futuro. Identificando esse presente, inclusive, com a noção do tempo que pára; expressão tão comum para traduzir a nossa angústia, face aos acontecimentos que, aparentemente, imobilizam as nossas vidas. 

   Contudo, tal como na natureza, também a nossa vida se renova permanentemente. Por vezes, com sinais ténues de um novo despontar, num processo lento de renovação da alegria e da esperança, da confiança e da serenidade. Mas tudo se renova! E à distância, sem que as cicatrizes da dor se desfaçam, a vida ganha um novo sentido. Não é por acaso que a sabedoria popular afirma, de forma proverbial: «não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe», remetendo-nos para a permanente novidade – para o bem e para o mal, é certo! – que define a nossa existência humana.

    Com esta consciência, necessitamos, nas horas difíceis e de dor, de alargar o nosso olhar interior, na esperança de que um tempo futuro cure as feridas do momento presente. Como a nova vida, que brota da terra, a recompor o solo das cinzas, necessitamos, nessas horas de dor, de um futuro que ilumine o presente, na certeza de que nada permanece insanável e de que tudo permanentemente se refaz! Necessitamos, pois, de reconquistar horizontes de vida! Isto, exatamente: horizontes de vida! Marcados por rejuvenescimentos de esperança! Mesmo quando a vida nos trai e no horizonte se inscreve a morte!

   Para quem é crente, mesmo aqui, na morte - pese embora, como para os demais, se experimente a mesma dor da perda e da ausência de quem é querido - abre-se um horizonte infinito de esperança, um rejuvenescimento absoluto da vida, uma transfiguração da paisagem humana, em que do pó e da cinza, se ergue uma nova natureza, um ser radicalmente novo, transfigurado numa eterna primavera – o mistério da ressurreição! Não já uma renovação da vida, sem mais, mas a vida em plenitude, como se de uma eterna primavera se tratasse!

   A vida humana, jogada entre alegrias e dores, tem sempre no seu horizonte uma contínua esperança! Uma esperança que é sentido e alento! Uma esperança que urge reconquistar permanentemente! É que – como bem refere José Luís Nunes Martins - «cada esperança abre horizontes infinitos e possibilidades imprevistas»!

 

Pampilhosa, 20 de Outubro de 2016
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(20ª Reflexão)

Idosos!


                                        IDOSOS                                            

   Celebrámos, no passado dia um de outubro, o Dia Internacional do Idoso. Instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1991, este ano teve como lema: Tome uma posição contra o envelhecimento. Visando a «tomada de consciência das atitudes negativas e discriminatórias», que hoje se vivem, em razão da idade, e seu «consequente prejuízo nas pessoas idosas», pretendeu-se alertar, com esta celebração, para a consciência de que todas as pessoas de idade têm o direito de alcançar o seu pleno potencial, ao mesmo tempo que a sociedade cumpre a sua promessa de construir uma vida de dignidade e de respeito pelos direitos humanos de todos, segundo a declaração de Ban Ki-moon, Secretário-geral da ONU.

   Em Portugal, conforme as últimas estatísticas do INE, cerca de vinte por cento da população tem mais de sessenta e cinco anos. Numa tendência progressiva de acréscimo, atendendo à baixa natalidade que se regista entre nós. Aliás, Portugal é mesmo um dos países europeus com uma das taxas de natalidade mais baixa, como se pode averiguar dos dados relativos à União Europeia.

   Na abordagem do conceito de pessoa idosa e como consequência de uma maior longevidade, mencionamos hoje uma terceira e uma quarta idade, que claramente se distinguem entre si. Na terceira idade, concretamente no exercício de uma “segunda maternidade”, enquanto avós, muitos são os idosos que desempenham tarefas fundamentais para o equilíbrio familiar. Como bem refere o Documento preparatório do Sínodo dos Bispos de 2015, denominado: A Vocação e a Missão da Família na Igreja e no Mundo Contemporâneo, muitos avós «ocupam-se dos netos», educando-os e transmitindo-lhes, inclusive, o próprio dom da «fé». Garantindo ainda, quantas vezes de forma silenciosa e discreta, um «precioso apoio económico aos jovens casais» (nº 18).

   Contudo, um dos primeiros deveres que todos temos de assumir para com os idosos – na terceira ou quarta idade - é o do reconhecimento e do autêntico respeito. Melhor ainda: o dever de um reconhecimento amoroso e de um respeito reverencial. Sabendo que os idosos «constituem o elo de união entre as gerações, garantindo a transmissão de tradições e hábitos nos quais os mais jovens podem encontrar as próprias raízes» (nº 18). Assim é, de facto, nalgumas sociedades organizadas segundo modelos ancestrais, onde os idosos continuam a ser reconhecidos na sua sabedoria e vivência, merecendo por parte da comunidade o respeito e mesmo uma certa veneração. Entre nós, nas denominadas sociedades desenvolvidas, tendemos a perder este sentido humano do lugar devido ao idoso. Centrados na produtividade, na eficácia e numa conceção hedonista da vida, os idosos podem parecer socialmente dispensáveis ou, de alguma forma, limitadores dessa fruição livre e completa da vida, transformando-se num certo peso familiar e social. Como refere o Papa Francisco: «o número de idosos multiplicou-se, mas as nossas sociedades não se organizaram suficientemente para lhes deixar espaço, com o justo respeito e a concreta consideração pela sua fragilidade e dignidade» (nº 17). É certo que as condições de vida se alteraram, mormente as condições laborais e familiares. Contudo, mesmo em novos contextos, é nosso dever cuidar zelosamente dos nossos idosos! Proporcionando-lhes novas oportunidades de criatividade, de aprofundamento de conhecimentos e de uma vivência jubilosa deste momento da sua vida e da sua história. Infelizmente, entre nós, um dos principais problemas dos idosos continua a ser o isolamento e a solidão, à semelhança de outros países, associados, quantas vezes, à pobreza e à desnutrição, fruto dos seus parcos rendimentos e reformas! Uma interpelação pessoal, a cada um singularmente e a todos, enquanto sociedade.

   Necessitamos de redescobrir a dignidade da pessoa idosa e de a revalorizar: em contexto familiar, institucional e comunitário; com um novo enquadramento mental e social. A interação entre gerações, particularmente entre os mais novos e os mais velhos, bem pode desempenhar aqui o papel pedagógico relativamente a este desiderato. Relembrando aquele princípio de Jean-Jacques Rosseau: «A juventude é a época de se estudar a sabedoria; a velhice é a época de a praticar»!

 

Pampilhosa, 13 de Outubro de 2016
Pe. Carlos Alberto Godinho
(19ª Reflexão)

 

 

 

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Só o amor cura!


SÓ O AMOR CURA  
                                
   Passando recentemente pelo Brasil, ao serviço da Pastoral do Turismo, tive a oportunidade de visitar e conhecer a «Fazenda da Esperança». Uma comunidade terapêutica destinada a recuperar jovens toxicodependentes, que nasceu da iniciativa do, então, jovem Nelson Rosendo dos Santos e do total apoio do seu pároco, frei Hans Stapel, franciscano alemão, a quem pudemos escutar na visita. A recuperação, nesta comunidade, assenta em três pilares metodológicos fundamentais: espiritualidade, convivência e trabalho. Nascida em Guaratinguetá, Estado de São Paulo, nos inícios da década de oitenta, esta primeira comunidade deu origem a muitas outras Fazendas, masculinas e femininas, no Brasil e em dezasseis outros países, incluindo Portugal, pois temos uma Fazenda em Maçal do Chão, concelho de Celorico da Beira.

   Se a espiritualidade é um pilar fundamental para a recuperação, com a reflexão da Palavra diária, a convivência é pautada por pequenos gestos de amor quotidianos, capazes de recuperar estes jovens, fazendo deles novos homens e novas mulheres.

   Num breve momento, em que passeava sozinho por algumas das ruas da Fazenda, refletia, uma vez mais: basta amar, pois só o amor cura! E percebi novamente que o amor é o único que liberta e nos refaz; o único que nos dignifica e nos constrói. Como esquecer o abraço profundo e sincero daquele jovem, em recuperação, que nos atendeu no serviço de bar? Ou o daquele outro com quem conversei, por alguns momentos, numa das ruas da Fazenda? O afeto partilhado é fruto do afeto recebido, pois quem é amado tende a amar. Verdadeiramente, uma aprendizagem para mim, levando-me à conclusão íntima, uma vez mais, e que reafirmo agora, na partilha convosco: basta amar, pois só o amor cura! E cura-nos a todos, de tantas limitações humanas. Não apenas a estes, em situação de dependência química; mas a tantos outros – a cada um de nós – nas situações tão diversas da existência humana! O amor é a chave fundamental para o crescimento humano – pessoal e comunitário! Reaprendi – pois a vida é sempre uma reaprendizagem contínua - que mais do que o afastamento ou a marginalização, necessitamos de ir ao encontro do outro ou dos outros, sem pretensões, simplesmente de coração aberto para acolher, para escutar, para amar. Só então, partindo daqui, podemos contribuir para a ajuda ao outro, seja a que nível for. Muitas vezes numa caminhada conjunta, em que ambas as partes se enriquecem na procura de uma nova humanização.

   Quando nas nossas comunidades tendemos a marginalizar, ou mesmo – no extremo – a ostracizar pessoas ou grupos, talvez devamos reaprender esta lógica: que a marginalização degrada pessoal, social e espiritualmente aqueles que afastamos de nós; ao passo que o amor regenera e reconstrói em todos essas dimensões da vida humana.

   Imerso numa experiência real de amor, como a daquela comunidade terapêutica, compreendi melhor a expressão de Madre Teresa de Calcutá: «o importante não é o que se dá, mas o amor com que se dá»!

   Nas nossas comunidades - sejam elas civis, religiosas, laborais, de amigos; em suma: humanas – necessitamos de renovar o amor! Para que a ninguém falte este dom que nos constrói! Conscientes de que – como referia ainda Madre Teresa - «a falta de amor é a maior de todas as pobrezas».

Pampilhosa, 06 de Outubro de 2016
Pe. Carlos Alberto Godinho
(18ª Reflexão)

 

 

Só o amor cura!


                                                    SÓ O AMOR CURA  
                                
   Passando recentemente pelo Brasil, ao serviço da Pastoral do Turismo, tive a oportunidade de visitar e conhecer a «Fazenda da Esperança». Uma comunidade terapêutica destinada a recuperar jovens toxicodependentes, que nasceu da iniciativa do, então, jovem Nelson Rosendo dos Santos e do total apoio do seu pároco, frei Hans Stapel, franciscano alemão, a quem pudemos escutar na visita. A recuperação, nesta comunidade, assenta em três pilares metodológicos fundamentais: espiritualidade, convivência e trabalho. Nascida em Guaratinguetá, Estado de São Paulo, nos inícios da década de oitenta, esta primeira comunidade deu origem a muitas outras Fazendas, masculinas e femininas, no Brasil e em dezasseis outros países, incluindo Portugal, pois temos uma Fazenda em Maçal do Chão, concelho de Celorico da Beira.

   Se a espiritualidade é um pilar fundamental para a recuperação, com a reflexão da Palavra diária, a convivência é pautada por pequenos gestos de amor quotidianos, capazes de recuperar estes jovens, fazendo deles novos homens e novas mulheres.

   Num breve momento, em que passeava sozinho por algumas das ruas da Fazenda, refletia, uma vez mais: basta amar, pois só o amor cura! E percebi novamente que o amor é o único que liberta e nos refaz; o único que nos dignifica e nos constrói. Como esquecer o abraço profundo e sincero daquele jovem, em recuperação, que nos atendeu no serviço de bar? Ou o daquele outro com quem conversei, por alguns momentos, numa das ruas da Fazenda? O afeto partilhado é fruto do afeto recebido, pois quem é amado tende a amar. Verdadeiramente, uma aprendizagem para mim, levando-me à conclusão íntima, uma vez mais, e que reafirmo agora, na partilha convosco: basta amar, pois só o amor cura! E cura-nos a todos, de tantas limitações humanas. Não apenas a estes, em situação de dependência química; mas a tantos outros – a cada um de nós – nas situações tão diversas da existência humana! O amor é a chave fundamental para o crescimento humano – pessoal e comunitário! Reaprendi – pois a vida é sempre uma reaprendizagem contínua - que mais do que o afastamento ou a marginalização, necessitamos de ir ao encontro do outro ou dos outros, sem pretensões, simplesmente de coração aberto para acolher, para escutar, para amar. Só então, partindo daqui, podemos contribuir para a ajuda ao outro, seja a que nível for. Muitas vezes numa caminhada conjunta, em que ambas as partes se enriquecem na procura de uma nova humanização.

   Quando nas nossas comunidades tendemos a marginalizar, ou mesmo – no extremo – a ostracizar pessoas ou grupos, talvez devamos reaprender esta lógica: que a marginalização degrada pessoal, social e espiritualmente aqueles que afastamos de nós; ao passo que o amor regenera e reconstrói em todos essas dimensões da vida humana.

   Imerso numa experiência real de amor, como a daquela comunidade terapêutica, compreendi melhor a expressão de Madre Teresa de Calcutá: «o importante não é o que se dá, mas o amor com que se dá»!

   Nas nossas comunidades - sejam elas civis, religiosas, laborais, de amigos; em suma: humanas – necessitamos de renovar o amor! Para que a ninguém falte este dom que nos constrói! Conscientes de que – como referia ainda Madre Teresa - «a falta de amor é a maior de todas as pobrezas».

Pampilhosa, 06 de Outubro de 2016
Pe. Carlos Alberto Godinho
(18ª Reflexão)

 

 

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Turismo acessível a todos!


TURISMO ACESSÍVEL A TODOS

   O Dia Mundial do Turismo, celebrado no passado dia 27, convida-nos a viver o princípio definido pela Organização Mundial de Turismo (OMT): Turismo para todos: promover a acessibilidade universal. Tendo em consideração o tema proposto pela OMT e pelo Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, organismo da Igreja Católica, que se associa, desde início, a este dia, na qualidade de diretor do organismo de Pastoral do Turismo, em Portugal, escrevi a nota nacional que fiz assentar em dois pilares fundamentais, para que o turismo seja realmente acessível a todos: o desenvolvimento do denominado "turismo social" e a criação de condições de mobilidade para todos aqueles que estão limitados nessa mobilidade por qualquer forma de deficiência. Se para estes últimos a permanente preocupação será a de promover um turismo integrador, que resulte, desde logo, na criação de condições de acesso aos diversos locais de interesse turístico, com a implementação de rampas, ou ainda à instalação de dispositivos que respondam às diversas formas de limitação, em linha, de resto, com muita da legislação portuguesa já em vigor; já para os primeiros a realidade é mais complexa. Vivemos, em Portugal, num contexto socioeconómico desfavorável a muitos. Com um cômputo geral de cidadãos nacionais que se encontram em pobreza ou em vias de pobreza, a cifrar-se nos dois milhões, sendo que um em cada cinco portugueses vive numa realidade socioeconómica deficitária. Sendo assim, podemos perguntar-nos: será o turismo uma prioridade, quando existem tantas outras carências humanas básicas não satisfeitas? Diremos que sim! Não sendo o turismo, é certo, uma prioridade na satisfação dessas necessidades básicas, é todavia um direito que assiste a todos, independente das suas condições económicas! Assim o defende o Código Mundial de Ética do Turismo, ao afirmar: «o turismo constitui um direito aberto do mesmo modo a todos os habitantes do mundo e nenhum obstáculo dever ser interposto no seu caminho» (Art. 7ª, nº 1).

   É que o turismo não contempla apenas a realidade do lazer, enquanto repouso, que já de si é um direito de todos; mas é igualmente fonte de conhecimento de outros povos e culturas; promotor da paz e do diálogo entre pessoas e comunidades; autêntica possibilidade de crescimento pessoal, na formação cultural, humana, cívica e espiritual. Um meio inequívoco de formação e de educação.

    Para que estes benefícios, próprios do turismo, sejam acessíveis a todos, e particularmente aos mais desfavorecidos economicamente, exige-se hoje um maior compromisso social das entidades públicas e privadas, com autênticas responsabilidades na promoção das pessoas e comunidades que servem ou onde se inserem. Mas exige igualmente um sentido profundo de partilha e de solidariedade entre membros de uma mesma comunidade, permitindo que a partilha de uns se transforme no bem de outros. O denominado «turismo social» resulta desta congregação de vontades, envolvendo a todos. Múltiplas são as suas formas de realização: desde as colónias de férias para crianças e jovens; a viagens organizadas nas comunidades, acessíveis a quem tem menores rendimentos, ou mesmo gratuitas, como acontece já com algumas das nossas entidades municipais, com passeios definidos para determinadas faixas etárias; até às parcerias com instituições orientadas para este tipo de turismo; entre tantas outras possibilidades, no compromisso público ou privado. 

   A Organização Mundial de Turismo deixa-nos, este ano, um forte desafio no sentido de esbatermos desigualdades, infelizmente tão desniveladoras da realidade social. A bem de um princípio de direito, de integração e de partilha. Um turismo acessível a todos deve ajudar-nos a reconhecer a dignidade de tantos que habitualmente vivem em situações de precariedade, como que à margem desses direitos que lhes deveriam ser assegurados. O compromisso da partilha e da solidariedade, também no turismo, pode levar-nos a garantir a muitos as condições de justiça e equidade que a realidade quotidiana não lhes garante. Necessitamos também, nesta atividade humana, de promover uma acessibilidade universal. A bem da justiça, da equidade e do respeito pela dignidade de cada pessoa.

Pampilhosa, 29 de Setembro de 2016
Pe. Carlos Alberto Godinho
(17ª Reflexão)

 

 

Preservar a Memória!


PRESERVAR A MEMÓRIA

   Uma das características das sociedades humanas é a sua permanente evolução. A vida é um devir constante, não apenas na novidade dos dias, mas igualmente na capacidade de desenvolvimento humano, tecnológico e mental, integrando aquilo que denominamos como desenvolvimento cultural. Entendendo-se a cultura como «tudo aquilo com que o homem apura e desenvolve os variados dotes do corpo e do espírito, com que procura submeter o universo ao seu poder, pelo conhecimento e pelo trabalho; torna mais humana a vida social, tanto na família, como em toda a comunidade civil, mediante o progresso dos costumes e instituições; e, finalmente, no decurso dos tempos, exprime, comunica e conserva, nas suas obras, as grandes experiências espirituais e aspirações, para que sirvam ao progresso de muitos, e até de todo o género humano» (GS. 53).

   No presente esta evolução, particularmente tecnológica, fruto das novas capacidades científicas, com consequências inevitáveis na vida social, transformou-se numa realidade vertiginosa. Evoluímos mais, em termos de conhecimento, nas últimas quatro décadas, do que em vários séculos passados. Com consequências positivas para o desempenho de várias funções; com benefícios para a vida humana, particularmente no que respeita à saúde e longevidade; mas também com algumas consequências negativas, particularmente refletidas no mundo do trabalho, onde os recursos humanos são cada vez menos necessários, provocando instabilidade social, particularmente devido ao desemprego. Certo é que esta transformação é inevitável, correspondendo à permanente arte criadora do ser humano.

   Não obstante esta evolução, não existem cortes entre tempos e modos de realizar determinadas tarefas. Existe, sim, uma espécie de linearidade que permite compreender os factos, os acontecimentos e suas evoluções inscritos no tempo longo, ou na «longa duração», para usar um conceito histórico.

   Ora é esta compreensão histórica que urge preservar como memória. A memória, que significa a conservação da experiência anterior, trazendo-a de novo à memor (palavra que significa «aquele que recorda» e que é raiz de memória) significa reter na consciência coletiva as técnicas, costumes, hábitos, modos de agir e de pensar de outros tempos, no sentido de preservarmos essa continuidade histórica, que nos serve como fonte de permanente recriação e como suporte para a compreensão do que somos e de que como agimos no presente. No fundo uma anamnese (recordação) que nos permita saber de onde provimos, para definirmos os caminhos que pretendemos construir permanentemente. Por outro lado, ainda, com a memória preservamos essa parte da cultura, anteriormente referida: na capacidade de exprimir, comunicar e conservar as grandes obras, experiências e aspirações humanas, que serviram para a compreensão do progresso hoje alcançado (cf. GS. 53).

   No presente opõem-se duas atitudes face à preservação da memória: por um lado, a incrível perda de memória, que limita a nossa autoconsciência, identidade e equilíbrio no processo evolutivo; e, por outro, a fixação na memória, quase como um anacronismo, pretendendo que o presente seja uma replicação do passado, impedindo o natural curso da história. Que muitas vezes mais não é senão a nostalgia do que já não existe.

   Ora, preservar a memória é um dever e uma necessidade de cada sociedade. Pois perdê-la é perder a sua identidade. Nesse sentido, o recurso a registos, sejam eles escritos, gravados em áudio ou em vídeo, a fotografias, a manuscritos, a recolhas testemunhais, a representações etnográficas, etc., são formas de preservar localmente essa memória. Várias são as instituições que têm este mérito, de preservar a memória coletiva, realizando um autêntico serviço público. Recordo instituições como o GEDEPA, na Pampilhosa, mas igualmente os múltiplos grupos de folclore, que assentam as suas danças em tradições ancestrais, trazendo ao presente o que fomos no passado. Não obstante, necessitarmos de agilizar outros recursos, mesmo mais institucionalizados, como museus e repositórios locais que atestem essa mesma memória. Um dever cultural das instituições públicas e mesmo de algumas instituições e empresas privadas.

   É inevitável a permanente mudança! Mas nunca podemos esquecer de onde provimos e para onde caminhamos, deixando que a memória desempenhe aqui uma função que lhe é tão meritória!
 
Pampilhosa, 22 de Setembro de 2016
Pe. Carlos Alberto Godinho
(16ª Reflexão)