quinta-feira, 6 de abril de 2017

Humanidades!


HUMANIDADES

   No Jornal «Público», da passada segunda-feira, José Pacheco Pereira afirmava que o prémio Pessoa, atribuído a Frederico Lourenço, não nos deve «iludir», num artigo intitulado «O nó górdio». Não que o autor discorde da atribuição do prémio; bem pelo contrário: reconhece-o inteiramente merecido. Mas sublinha o cronista que «o mundo sobre o qual ele estuda, escreve e traduz é cada vez menos no espaço público do saber, onde cada vez menos se sabe sobre o mundo clássico» (Público, 03.04.2017).

   Na verdade, a sociedade atual tende a organizar-se em torno das tecnologias e das ciências exatas, definindo-se estas últimas pela sua capacidade de expressar o quantificável, segundo métodos próprios de análise; compreendendo as Matemáticas, a Física, as Engenharias, a Química, as Estatísticas, ou a Computação. Isto em desprimor das ciências humanas, que tendo o próprio ser humano e as sociedades como objeto de estudo, se desenvolvem em áreas tão distintas como a Filosofia, a História, a Arqueologia, a Antropologia, as Artes ou as Letras.

   Não obstante a relativa procura de alguns cursos de ciências humanas ou Humanidades, como a História por exemplo, cujas vagas na Faculdade de Letras, na Universidade de Coimbra, quase sempre se preenchem; há hoje uma subalternização destas áreas do saber, face à procura, por parte do mercado de trabalho, de competências adquiridas no saber tecnológico e nas ciências exatas ou nas ciências naturais.

   Esta situação é sintoma de três dificuldades que advêm da nossa vivência social, no momento presente: um mercado que não se adequou e desvalorizou o potencial de conhecimento que advém das ciências humanas; uma universidade que afunilou a sua oferta, nesta área, restringindo-a a duas ou três áreas de intervenção no mundo laboral, das quais ainda não se libertou; e -o mais grave – o incremento de um enorme desconhecimento da vida humana e suas principais inquietações, da construção da história e seus dinamismos, bem como do desconhecimento dos valores culturais e patrimoniais; limitando, ainda, o sentido crítico face à vida pessoal e em sociedade. Por certo que alguns conhecimentos na área das humanidades inviabilizariam algumas práticas a que hoje já começamos a assistir: no mundo da gestão, da política, dos meios de comunicação, entre tantos outros.

   Necessitamos de redescobrir a unicidade de todo conhecimento, mesmo para quem enverede por uma prática mais tecnológica ou própria das ciências exatas, num diálogo profícuo entre todas as áreas do saber. Sob pena de nos tornarmos autómatos, sem uma autêntica consciência do eu e suas inter-relações sociais. Em última instância, poderíamos chegar ao ponto daquela sociedade concebida por Aldous Huxley, no seu livro Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, onde cada um estaria programado para executar uma e única ação em sociedade, segundo a categoria definida nessa estruturação social, mesmo sem a sua conceção do pré-condicionamento biológico.

   É certo que o imediatismo cultural em que vivemos não facilita uma visão de um conhecimento alargado. Mas ele é absolutamente necessário. Tanto mais que todas as áreas do conhecimento, em última instância, tratam do «fenómeno humano», para utilizar uma expressão de Teilhard de Chardin, sem as quais o homem, na sua compreensão, estará sempre incompleto!

 Pampilhosa, 06 de Abril de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(41ª Reflexão)

 

 

Sentido Crítico!


SENTIDO CRÍTICO

    Há alguns anos, quando ainda seminarista, no Seminário Maior de Coimbra, ouvia da boca do Monsenhor António Duarte de Almeida, então um dos diretores espirituais do Seminário, uma expressão que nunca mais esqueci e que, mais do que nunca, se adequa aos nossos tempos. Dizia ele, referindo-se ao poder dos meios de comunicação, particularmente da televisão, e ao modo como as pessoas absorviam toda a informação que lhes era facultada: «as pessoas estão diante da televisão como quem enche chouriças!». Queria ele dizer que consumiam tudo, de forma acrítica, como se toda a informação tivesse a mesma importância, a mesma qualidade e a mesma veracidade. Engoliam tudo, de forma passiva, como se em tudo o que ali se afirmava e visualizava residisse a autêntica verdade.

   Atualmente, a informação evoluiu bastante, na sua democraticidade e globalização. Todos nós, com os novos meios ao nosso dispor, podemos criar e aceder a mais informação, a novos conteúdos, e ainda sem os limites de um alinhamento televisivo e os horários pré-estabelecidos.

   Ora, face a esta nova realidade, necessitamos hoje, mais do que nunca, de um autêntico sentido crítico, que nos permita filtrar, com critérios objetivos, a informação a que acedemos. Necessitamos de um apurado sentido crítico para não nos deixarmos condicionar pelas opiniões correntes, pelas primeiras afirmações que nos chegam e que, quantas vezes, damos como adquiridas, mesmo quando elas carecem de fundamento e são, não raro, utilizadas para manipular opiniões. Chega a ser dramática a forma como hoje se usam os novos meios de comunicação, particularmente as redes sociais. Sendo um bem, na capacidade de comunhão entre as pessoas, de partilha de ideias, de participação cívica e meio pessoal de expressão, há, todavia, quem absorva tudo sem qualquer filtro, deixando-se perturbar nas suas convicções e nas suas vivências com a mais simples publicação. Há dias circulou pelas redes sociais um conjunto de notícias sensacionalistas, aparentemente de fontes fidedignas, mas que afinal provinham de uma fonte que tem como finalidade exclusiva difundir notícias falsas. Não estranhei tanto o conteúdo das notícias em si, perfeitamente fantasiosas, quanto a receção e a reação a tais notícias! E percebi, claramente, como tantos consomem a informação sem qualquer questionamento. Isto é, dando como certo tudo aquilo que é publicado. Ora, neste contexto, os novos meios de comunicação, permitindo a referida democraticidade e até mesmo uma outra participação cívica na construção de debates comuns, são um espaço aberto de condicionamentos e de manipulação ideológica ou de interesses diversos.

   A par da formação no acesso aos novos meios de comunicação, sinto que é urgente ajudar as pessoas atualmente a munirem-se de instrumentos pessoais para aprenderem a gerir estes novos meios e seus conteúdos. É que podemos estar a viver uma nova iliteracia: não já de quem não sabe ler; mas de quem não sabe interpretar devidamente o que lê! E esta nova realidade trabalhada por especialistas de marketing, de psicologia ou mesmo de algumas pretensões ideológicas, podem constituir um perigo para o equilíbrio pessoal e social. Aliás, a maioria, senão a totalidade, das novas tendências sociais, politicas, económicas e ideológicas valem-se destas ferramentas para atingir os seus objetivos.

   Se Karl Popper dizia já, em 1995, no seu célebre livro Televisão: um perigo para a Democracia, que «a televisão se tornou um poder incontrolado, e qualquer poder incontrolado contradiz os princípios da democracia»; hoje confrontamo-nos com um poder massificado, onde a liberdade e a consciência pessoal se podem diluir, dissolvendo-se nessa massificação da informação e dos seus objetivos.

   Sabendo, assim, que o sentido crítico consiste na capacidade de questionar e analisar de forma racional e inteligente cada assunto, procurando sempre a verdade; é hoje necessário, mais do que nunca, cultivarmos tal atitude, formando as gerações mais novas para uma atitude semelhante! Em nome da procura da verdade, do cultivo da liberdade, contra a massificação, e mesmo na salvaguarda permanente do equilíbrio pessoal e social.


Pampilhosa, 30 de Março de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(40ª Reflexão)

 

Preconceito!


PRECONCEITO 

    Nos tempos que correm, em que tudo parece tão volátil e a imagem define muitas das nossas impressões interiores, corremos o risco de absolutizar essas mesmas impressões, tornando o nosso conhecimento algo de efémero; inviabilizando o aprofundamento da razão de ser das coisas e o conhecimento sério do mundo e das pessoas. Esta forma de agir, com base no imediato, no transitório e na primeira imagem, comporta o que definimos como preconceito, que carece sempre de novas abordagens, ulteriores desenvolvimentos e conhecimento mais aprofundado, para se poder tornar num autêntico conceito. Se o preconceito, que se define pela «ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial»[1] e ainda como «opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos»[2], se pode aplicar a todas as coisas, causando uma visão ofuscada da realidade e do mundo; torna-se particularmente grave quando se aplica à relação com as pessoas, podendo compreender mesmo atitudes de intolerância. Certamente que já nos aconteceu a todos fazermos juízo de uma pessoa, com base numa primeira imagem, que depois se esfuma na relação pessoal – para o bem e para o mal. A primeira imagem pode criar, ou não, alguma empatia, que só no conhecimento mais aprofundado do outro se pode esclarecer. Ora, nós tendemos, quantas vezes, a determo-nos na primeira imagem que construímos de algumas pessoas – o preconceito -, sem lhes darmos, pela relação interpessoal, a possibilidade de se revelarem tal qual são, na sua verdadeira identidade. Tal significa sempre um empobrecimento das relações humanas e uma limitação na capacidade de acolhimento e de conhecimento dos demais.

   Mas o preconceito pode advir, também, da impressão que os outros nos transmitem sobre uma terceira pessoa, passando nós a pensar segundo um conceito que não é propriamente nosso, mas daquele que no-lo transmitiu. Se não nos dermos a oportunidade de fazer a experiência pessoal do conhecimento dessa outra pessoa, fundamentando nesse conhecimento a nossa opinião pessoal, podemos tornar-nos profundamente injustos e precipitados na visão dos demais.

   O preconceito está muito mais presente nas nossas relações humanas do que podemos imaginar. Com o risco de selecionarmos as pessoas, com quem nos relacionamos, com base na aparência ou naquilo que delas ouvimos dizer.

   Necessitamos, pois, de redescobrir as nossas relações humanas – relações marcadas pelo acolhimento, conhecimento sério e pelo respeito mútuo. Por outro lado, não obstante acolhermos frequentemente impressões alheias sobre determinada pessoa ou mesmo famílias, necessitamos de estabelecer relações autênticas de conhecimento pessoal e social, que nos conduzam a uma visão justa e equilibrada do outro, ou dos outros, assente na nossa experiência e não apenas no que advém do conhecimento alheio.

    O preconceito, por vezes inevitável na nossa primeira abordagem à relação com o mundo e com as pessoas, nunca pode ser a estância última do nosso conhecimento, até porque, como refere William Hazlitt, «o preconceito é filho da ignorância». Necessitamos de ir sempre mais longe no conhecimento das realidades e das pessoas. Quanto a estas, o preconceito é sempre inimigo da relação humana. Ora, para termos relações humanas sadias, temos de ultrapassar sempre o perigo deste preconceito, abrindo-nos permanentemente aos outros em sincera atitude de alteridade, de acolhimento e de amor. Sabendo que só estas atitudes humanizam verdadeiramente as nossas relações interpessoais.

Pampilhosa, 23 de Março de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(39ª Reflexão)



[1] Voc. Conceito. In Dicionário Priberam. In https://www.preberam.pt [Consultado a 12.03.2017].
[2] Ibidem.

Jejum!


JEJUM 

   A Igreja iniciou, em quarta-feira de cinzas, o tempo da quaresma. O período de preparação para a celebração do maior acontecimento da fé cristã: a celebração do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – a Páscoa da Ressurreição!

   Precisamente no início deste tempo, em quarta-feira de cinzas, Jesus pedia-nos, no Evangelho, para vivermos a vida cristã sem hipocrisia, deixando-nos, todavia, a indicação de três atitudes a privilegiar em tempo de quaresma: a oração, a esmola e o jejum. Curiosamente, remetendo-nos para as três dimensões fundamentais da nossa relação humana: a relação com Deus (a oração), a relação com o próximo (a caridade, simbolizada na esmola) e a relação connosco próprios (o jejum).

   É nesta última atitude – o jejum – que agora nos detemos. A finalidade do jejum não é outra senão o domínio de nós mesmos, a capacidade de moderação nos nossos apetites e desejos, na perspetiva de alcançarmos uma maior liberdade e uma vida com outra densidade e profundidade, humana e espiritual. Tradicionalmente, o jejum sempre foi entendido como a privação de certos alimentos, particularmente de carne, privilegiando-se uma alimentação mais frugal, muitas vezes à base de vegetais e de outros produtos mais simples. Esta orientação foi assumida pela Igreja, durante séculos, e vivida pelos cristãos nas diversas comunidades cristãs, mas, muito particularmente, nas comunidades monásticas ou conventuais. Bastaria recordar o Deserto dos Carmelitas do Bussaco, onde os frades, que já só se alimentavam habitualmente de legumes e de peixe, neste período se impunham uma penitência ainda maior, alimentando-se quase exclusivamente de verduras.[1]

   A verdade é que esta prática do jejum parece ultrapassada, ficando-nos apenas como memória histórica! Todavia, não é assim! Nunca, como nos dias de hoje, o jejum esteve tão em voga, como meio de alcançar alguns objetivos pessoais. É certo que se abandonou o jejum por razões espirituais, mas este foi sobrevalorizado por razões corporais. São hoje muitas as pessoas que se impõem duros regimes alimentares para alcançar ou manter o corpo definido, segundo o modelo socialmente idealizado. Sejam figuras femininas ou masculinas, são muitos os que se forçam a múltiplas privações para manter os atuais padrões de beleza, segundo a conceção social. De facto, o jejum continua em voga; mudaram-se, isso sim, as suas motivações. Passou-se da preocupação espiritual, para a preocupação física. Muitas vezes quase como uma «ditadura» do socialmente aprovado, de que muitos não querem abdicar.

   É certo que o jejum continua a ser hoje, como ontem, uma fonte de equilíbrio físico, muitas vezes necessário. É sabido que alguns dias de jejum permitem ao organismo reequilibrar-se, em termos de saúde e de bem-estar, como por exemplo o reequilíbrio do sistema imunitário, não obstante os nutricionistas aconselhem preferencialmente uma alimentação permanentemente equilibrada.

   Tão pouco para os cristãos, em tempo de quaresma, o jejum se poderá resumir à opção pelo consumo de carne ou de peixe, tantas vezes bem mais apetecível e dispendioso. O verdadeiro jejum consiste sempre na moderação de si mesmo, podendo passar pela privação da comida ou da bebida, mas igualmente por muitas outras atitude, porventura bem mais necessárias. O Papa Francisco deixa-nos mesmo algumas sugestões de jejum, neste tempo de quaresma, que aqui partilho convosco: «Jejum das palavras negativas, dizendo palavras bondosas; jejum de descontentamento, enchendo-se de gratidão; jejum de raiva, enchendo-se de mansidão e paciência; jejum de pessimismo, enchendo-se de esperança e otimismo». Só assim, com estas e outras atitudes, de autêntica transformação humana, podemos alcançar o que Deus dizia através do profeta Joel, ainda em quarta-feira de cinzas: «Rasgai os vossos corações e não os vossos vestidos» (Jl. 2, 13), num convite claro à sinceridade da transformação pessoal.

    Se o jejum é um caminho de perfeição física, pode continuar a sê-lo também de perfeição espiritual. Mas agora com esta visão mais alargada, para que o homem se supere e alcance níveis mais profundos de autêntica humanidade.


Pampilhosa, 09 de Março de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(38ª Reflexão)

 




[1] Cf. SANTOS, J. J. Carvalhão – Novo Guia Histórico do Buçaco. Coimbra: Edições Minerva, 2002, p. 21.

Trabalho!


TRABALHO 

   O trabalho é um direito fundamental da pessoa. Assim o afirma explicitamente a Carta Internacional dos Direitos Humanos, quando refere: «Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego» (art. 23º, § 1). Seguida, depois, pela lei fundamental de vários países, como Portugal, que afirma, na sua Constituição da República Portuguesa: «Todos têm direito ao trabalho» (art. 58 § 1º). Princípio essencial que, segundo a mesma Constituição, se poderá assegurar conquanto o Estado assuma o compromisso de promover «a execução de políticas de pleno emprego; a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; a formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores» (art. 58 § 2º).

   Ora, estes princípios fundamentais são claramente desrespeitados, quando, em Portugal, a taxa de desemprego se cifrou, em 2016, nos 11,1%.

   São múltiplas as razões atuais para este nível de desemprego, de que sublinhamos apenas três: a substituição da mão-de-obra por novos meios tecnológicos, as máquinas que entram nas linhas de produção e dispensam muita intervenção humana imediata; a crise económica, já que o consumo de bens, em tempos de crise, tende a diminuir, suscitando menor produção e mais despedimentos; e a baixa qualificação de alguns trabalhadores que, não obstante possa parecer o inverso, não acompanham a evolução tecnológica dos novos meios de produção. Razões a que, certamente, se juntam outras, menos evidentes e mesmo injustas, que potenciam tal nível de desemprego.

   Mas, referir o trabalho como um direito fundamental, não nos pode levar a pensar apenas numa das suas dimensões – a justa remuneração de todos, permitindo uma vivência digna de cada pessoa e do seu agregado familiar. Este é apenas um aspeto, embora determinante para essa dignidade da pessoa e para o justo equilíbrio da sociedade. O trabalho constitui ainda um direito fundamental da pessoa enquanto fator que lhe proporciona a sua realização pessoal. O Papa João Paulo II, numa das suas encíclicas – Laborem Exercens - definia dois conceitos para a compreensão do trabalho: a sua dimensão de «bem útil», servindo as necessidades básicas da pessoa; e a sua dimensão de «bem digno», enquanto fundamental para a afirmação da dignidade da pessoa, condição de afirmação dessa mesma dignidade. O trabalho responde, assim, a estas duas dimensões básicas, da pessoa: à realização humana, enquanto sujeito, e à sua digna subsistência, que lhe é devida. A que acresce, ainda, um terceiro aspeto: o contributo de cada um para o bem comum de toda a comunidade humana. O trabalho compreende sempre uma dimensão solidária, contribuindo «para multiplicar o património de toda a família humana», tomando assim, uma vez mais, as palavras do Papa João Paulo II.

   Ora, atendendo aos princípios enunciados – consignados nas leis civis e afirmados na Doutrina Social da Igreja – há que empreender um renovado esforço de reorganização e definição das leis laborais, de modo a que ninguém fique privado deste bem essencial. Sabendo que o trabalho constitui, hoje, um bem escasso, talvez necessite de uma nova solidariedade entre trabalhadores, bem como de uma redefinição de políticas de emprego, por parte dos empregadores.

   Certo é que o Estado não pode demitir-se dos princípios constitucionais a que está obrigado: o empreendimento de políticas de pleno emprego e a formação cultural e técnica de todos os trabalhadores.

   Só assim é respeitada a dignidade humana de cada sujeito e se constrói uma sociedade verdadeiramente justa. Princípio que poderíamos afirmar simplesmente como ético, mas cujo suporte legal se encontra nas leis fundamentais que nos regem enquanto sociedade.
 

Pampilhosa, 02 de Março de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(37ª Reflexão)

 

 

Socionomia!


SOCIONOMIA  

   Há dias chegou-me à caixa de correio eletrónico um texto muito interessante, com o título «Eutanásia e o mito da autonomia», do professor de direito da Universidade de Lisboa, Diogo Costa Gonçalves. Tratando, como se depreende, do denominado «mito da autonomia» na perspetiva desta questão sensível, em debate público, como é a eutanásia – artigo que, de resto, recomendo vivamente -, fez com que me detivesse particularmente, após a sua leitura, na questão da autonomia.

   Certamente que todos nós entendemos o conceito de autonomia como profundamente positivo, na perspetiva da construção da pessoa e da sua vivência pessoal e social. Aliás, toda a educação é – em certo sentido – uma formação para a autonomia. Mas autonomia entendida como capacidade de autodeterminação, de resposta às necessidades humanas e de desenvolvimento das capacidades individuais de cada sujeito.

   Todavia, a palavra autonomia significa, etimologicamente, a regra de si mesmo (na composição de autós – eu mesmo; e nómos – regra). Ora, se entendermos a autonomia em sentido dogmático, como fim absoluto em si mesma, então cada sujeito torna-se verdadeiramente a regra para si, prescindindo das normas comuns, o que conduz a um completo subjetivismo e, em última análise, a uma inevitável realidade anárquica.

    Ao invés, por oposição, podíamos tender a afirmar a necessidade da heteronomia, essa conceção que nos levaria a viver segundo as normas definidas pelo outro. Sabendo que, em última instância, uma heteronomia absoluta conduziria à impossibilidade de autodeterminação do sujeito, de exercício da sua liberdade e, como consequência extrema, a uma “ditadura”, que privaria o sujeito da sua liberdade pessoal.

   Assim, face a estes dois extremos, opostos entre si, que colocam o sujeito no confronto do eu normativo absoluto com o tu normativo absoluto, que via podemos definir para compaginar a liberdade pessoal com a responsabilidade social? Necessitamos de viver e de valorizar a socionomia! Esta terceira via compreende, necessariamente, autonomia e a heteronomia. Ou seja, a minha autodeterminação e a minha responsabilidade social. A socionomia é hoje uma ciência, criada por Jacob Levy Moreno, nos meados do século XX, que estuda os grupos e as suas relações, particularmente na articulação entre o individual e o coletivo.

   Deixando de parte as metodologias desta ciência, podemos afirmar que necessitamos de redescobrir, atualmente, a essência da socionomia, atendendo a que esta articulação entre sujeito e sociedade nos conduz ao respeito pelo património comum, mas numa decisão livre de comunhão com o próximo e com as normas comuns que organizam as nossas vidas em sociedade. Além disso, a socionomia apela à capacidade de relativização do eu, movendo o sujeito para a abertura ao outro. Em última instância, a socionomia esbate a sua natureza de norma – sem negar a sua raiz etimológica -, para abrir o sujeito a uma interação profícua e fecunda na relação com os demais. Aqui se inscreve, por exemplo, a solidariedade, que sendo sempre uma ato livre da pessoa, a move no serviço ao próximo.

   Em sociedades, como as nossas, que tendem a dogmatizar a autonomia e consequentemente a subjetividade, ao ponto de se afirmar um subjetivismo dogmático; não desejando, contudo, que jamais se perca a autêntica liberdade pessoal; necessitamos de revalorizar a socionomia, enquanto meio de equilíbrio entre o exercício da minha liberdade pessoal e da minha responsabilidade social. Esta poderá ser uma exigência da hora presente, como fator de equilíbrio na articulação entre sujeito e sociedade.  

  
Pampilhosa, 23 de Fevereiro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(36ª Reflexão)

 

 

Refugiados!


REFUGIADOS


   Uma das realidades sociais e políticas que mais marca a hora presente, da nossa história mundial, é o drama dos refugiados. Por um lado, uma multidão imensa de homens, mulheres e crianças que fogem à brutalidade da guerra e da destruição, procurando defender as suas vidas e garantir o mínimo de condições dignas para viver; por outro, o mundo desenvolvido, fundado nos valores democráticos, capaz de oferecer as condições estáveis de vida, mas que parece tender a fechar-se cada vez mais sobre si e os seus interesses, tendendo a contrariar valores vertidos em lei internacional, logo após a Segunda Guerra Mundial.

   A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, determina que «todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal» (art. 3º), acrescentando, no que se refere ao direito de asilo, que «toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países» (art. 14º, nº 1). E a Convenção das Nações Unidas, que se lhe seguiu, em 1951, define que «os estados contratantes aplicarão as disposições desta Convenção aos refugiados sem discriminação quanto à raça, religião ou país de origem» (art. 3º).

   Ora, pese embora a consciência política quanto à vinculação de cada estado signatário a estes acordos, há uma propensão, de alguns países, para a recusa destes direitos fundamentais. Se a Hungria, com o pretexto de salvaguarda da sua identidade nacional, construiu um primeiro muro para impedir a entrada de refugiados no seu território; tem sido seguida pela desconfiança política de outros países e da atitude expressa de recusa, como ultimamente constatamos na nova administração americana.

   Curiosamente, mais do que pretextos políticos, que se jogam nos subterrâneos da diplomacia mundial, por vezes tão obscura nos seus interesses, todos nós constatamos recusas de acolhimento de refugiados essencialmente com base na sua religião. Em contradição clara com a Convenção das Nações Unidas.

   Problemático é ver como esta discriminação colhe junto das sociedades de vários países europeus e do novo continente. Aparentemente com a justificação de salvaguarda da integridade social, por força da afirmação da necessidade de uma renovada segurança interna. Ilusória, diga-se! Pois se o receio é o da entrada de terroristas, a verdade é que estes operam a partir do interior dos estados que pretendem defender-se, como constatamos em França, por exemplo! Aliás, a conduta política e social de descriminação, com base na religião, só tende, como sabemos, a incrementar novos ódios e eventuais atentados.

   Necessitamos hoje, neste campo, como em tantos outros, de regressar aos valores que se afirmaram após a Segunda Guerra Mundial, reavivando uma nova solidariedade humana e a determinação na salvaguarda dos direitos humanos básicos devidos a cada pessoa.

   Mas devemos ir mais longe: só compreenderemos verdadeiramente os outros quando nos colocarmos ou imaginarmos no seu lugar! Hoje, infelizmente, todos nós assistimos aos dramas alheios no conforto dos nossos lares; lamentando a sorte alheia, ou tornando-nos insensíveis a essa mesma sorte. Só no exercício de perceção íntima destes dramas humanos, seremos capazes de agir.

   Diante de irmãos nossos, vítimas da guerra, que perderam os seus bens mais básicos, como a casa, o acesso à alimentação, à educação, à saúde, entre tantos outros, e que fogem para salvar as suas vidas, como procedemos? Se é certo que as leis tutelam estes dramas sociais, deve ser o nosso coração humano a conduzir-nos ao encontro do outro e das suas necessidades fundamentais. Este tempo é um desafio a desinstalarmo-nos da nossa indiferença, do nosso individualismo e do nosso comodismo!

   Estes irmãos gritam, em surdina, aquele princípio básico que está na base da nossa solidariedade: «amar o próximo como a si mesmo»!

   Certamente, mobilizando-nos agora para acolher e garantir a dignidade de todos, na esperança de que, um dia, estes irmãos possam regressar, em paz, às suas casas, reconstruindo as suas vidas ao ritmo da reconstrução dos seus países! Esta é a hora singular de apelo a uma nova humanidade!


Pampilhosa, 16 de Fevereiro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(35ª Reflexão)