quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Ambiente


AMBIENTE

   Uma das questões mais candentes da atualidade, não obstante haver ainda quem a relativize, é a questão ambiental. De uma forma muito sucinta, esta pode definir-se como uma preocupação social (há quem refira mesmo um movimento social!) em torno dos problemas que a falta de um desenvolvimento sustentável adequado pode trazer para a qualidade de vida do ser humano, na atualidade, e para o futuro das próximas gerações.[1] Realidade que ultrapassou, há muito, os meandros de algumas ideologias, para assumir lugar importante na agenda política internacional. Pese embora, apesar de algumas decisões assertivas, permaneça enfraquecida face à supremacia de alguns interesses económicos, que relegam para segundo plano a sustentabilidade ambiental. Todavia, estamos num ponto sem retorno. E quem no-lo diz são, uma vez mais, os cientistas. Depois de um primeiro grande aviso sobre as consequências de uma destruição ambiental, de há vinte cinco anos atrás, da Union of Concerned Scientists, acompanhada da assinatura de mais mil e setecentos cientistas independentes, alguns deles prémio nobel da ciência, com o documento «Advertência dos Cientistas do Mundo à Humanidade», de 1992, em que referiam perentoriamente que «é necessária uma grande mudança na nossa gestão da Terra e da vida para se evitar uma vasta miséria humana»[2]; eis que surge agora uma segunda advertência, que nos chama a atenção para o fracasso das medidas tomadas desde então, com exceção da diminuição da camada de ozono, e a advertência de que estamos à beira de uma catástrofe ambiental, sobretudo devido à trajetória das mudanças climáticas, como consequência do aumento dos gases de efeito estufa (GEE), particularmente provocados pela queima de combustíveis fósseis, desmatamento e aumento significativo de produção agropecuária, entre outras causas. Nesta segunda advertência, em que se propõem diversas medidas concretas em ordem a uma nova sustentabilidade ambiental, reafirma-se que «para evitar miséria generalizada e perda catastrófica de biodiversidade, a humanidade deve adotar práticas ambientalmente mais sustentáveis e alternativas em relação às práticas atuais»[3].

   Ora, sem uma visão demasiado pessimista, podemos afirmar que começamos já a sentir os efeitos das alterações climáticas enunciados. Particularmente os países do sul da Europa, como Portugal e Espanha, são dos mais vulneráveis, onde o aumento das temperaturas e a diminuição da pluviosidade mais se fazem sentir, com todas as consequências que daí advêm para a resposta às nossas necessidades humanas mais básicas e às necessidades da produção agrícola. Este ano, em que tivemos menos chuva e temperaturas mais elevadas, ainda que podendo ser um ano de exceção, insere-se, todavia, num ciclo de continuidade temporal que não é muito animador. Assim, necessitamos de nos consciencializar que urge tomarmos medidas eficazes que envolvam a sociedade no seu todo – decisores políticos, empresários, instituições formativas e cada cidadão, em particular. A defesa do ambiente deve ser transversal a todas as nossas atividades – públicas e privadas.

   Mas sintomas deste efeito da crise ambiental registam-se ainda a outros níveis, de que é exemplo a degradação do património histórico construído. Como se pode constatar na Catedral de Notre Dame, em Paris, cujas pedras multiseculares estão a desfazer-se com a poluição, ameaçando ruir. Realidade que afeta outros monumentos, um pouco por toda a parte.

   A preservação do ambiente e, consequentemente, da nossa casa comum, exige-nos uma nova atitude. O Papa Francisco, na sua encíclica Laudato Si (Louvado Sejas – Sobre o cuidado da casa comum), dirigida a todos os cristãos e a todos os homens de boa vontade, faz um apelo veemente neste sentido, interpelando-nos a viver uma autêntica «conversão ecológica» (LS. 217); que compreenda uma nova mentalidade e uma nova atitude na relação com a criação. É que a questão ambiental não é já uma questão ideológica, como alguns ainda querem fazer crer, mas sim uma questão da nossa sobrevivência!

 
Pampilhosa, 30 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(65ª Reflexão)



[1] Cf. GRUPO ESCOLAR – A questão ambiental. Disponível em www.grupoescolar.com (consultado a 28.11.2017).
[2] Cf. Advertência dos Cientistas do Mundo à Humanidade: um segundo aviso. In Sustentabilidade é ação. Disponível em: http://sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.com (Consultado a 28.11.2017).
[3] Cf. Ibidem.

Dia Mundial dos Pobres


DIA MUNDIAL DOS POBRES

   No passado domingo, a Igreja Católica celebrou, universalmente, o Iº Dia Mundial dos Pobres. Uma celebração instituída pelo Papa Francisco, na sequência do recente Jubileu da Misericórdia. Ainda que sendo um convite dirigido aos cristãos, este dia alarga-se a todos, como refere o Papa Francisco: «Este dia pretende estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à cultura do descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro» (DMP. 6). Para logo acrescentar, numa perspetiva universal: «Ao mesmo tempo, o convite é dirigido a todos, independentemente da sua pertença religiosa, para que se abram à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade» (DMP. 6).

   O fenómeno da pobreza tem causas muito profundas e diversificadas, que não podemos analisar aqui, senão enunciá-las: políticas erradas, nacionais e internacionais, incapazes de integrar socialmente todos os cidadãos; interesses económicos desmedidos, por parte de pessoas e empresas; assimetrias geográficas, em termos de capacidade de produção; falta de solidariedade efetiva entre as nações; cultura do bem-estar e do desperdício de alguns, face à necessidade de bens essenciais para outros… Enfim, uma multiplicidade de razões que nos colocam num mundo profundamente desequilibrado, onde uma minoria detém bens de forma excedentária e uma grande maioria não possui os bens essenciais para a sua subsistência e desenvolvimento, como sejam os bens alimentares, o acesso à saúde, à educação, ao desenvolvimento tecnológico, etc. Mas tudo isto resulta essencialmente de uma atitude de egoísmo que marca a nossa humanidade. O Papa Francisco, na sua mensagem para este dia, afirma claramente: «Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão» (DMP. 6). Em conformidade, de resto, com a afirmação da Gaudium et Spes do Vaticano II, que diz: «Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todo o género humano e de todos os povos, de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade» (GS. 69).

   Ora, se este é o panorama internacional, também a nível nacional vivemos desequilíbrios muito profundos. Bastaria, para o evidenciar, enunciar dois aspetos: num país com cerca de dez milhões de habitantes, mais de dois milhões de portugueses vivem na pobreza; e, no contexto da crise que atravessámos, nos últimos anos, as diferenças acentuaram-se, tendo Portugal registado um número impar de milionários.

   Se é certo que não se pretende nivelar, sem mais, o nível de vida de todos os cidadãos, num igualitarismo ideológico; a verdade é que cabe à Igreja, associada a todos os homens de boa vontade, trabalhar no sentido da implementação da justiça, que mais não é senão o dar a cada um o que lhe é devido! Precisamente o que lhe é devido pela criação, naquela conceção do destino universal dos bens, que está sempre acima de qualquer apropriação pessoal ou de apenas algumas comunidades.

   É certo também que muitos dos nossos concidadãos têm uma incapacidade quase permanente de orientação pessoal e de gestão básica dos seus bens, o que os remete para situações de fragilidade social: por via do álcool, da toxicodependência, da falta de capacidade mental, ou de outras condicionantes pessoais, de caráter familiar ou até mesmo de inadaptação laboral.

   Tendo em consideração todas estas situações, cabe-nos a nós, em espírito de autêntica fraternidade, cuidarmos uns dos outros, não nos alheando dos seus problemas. Ora, é precisamente isto que o Papa Francisco nos pede, com a instituição deste dia. Afirma ele, apontando-nos o grande objetivo do Dia Mundial dos Pobres: «Convido a Igreja inteira e os homens e mulheres de boa vontade a fixar o olhar, neste dia, em todos aqueles que estendem as suas mãos invocando ajuda e pedindo a nossa solidariedade. São nossos irmãos e irmãs, criados e amados pelo único Pai celeste» (DMP. 6).

   Um desafio que se tem de estender para além de um dia; mas cuja recordação, no domingo que lhe é dedicado, tem este desiderato: fazer-nos lembrar que somos todos irmãos e que devemos cuidar uns dos outros, promovendo sempre a justiça e a equidade.

Pampilhosa, 23 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(64ª Reflexão)

 

Descentralização



DESCENTRALIZAÇÃO

   O drama dos incêndios, deste verão e outono, colocou-nos, uma vez mais, face à questão da administração do território português. Já vai longe, cronologicamente, a pretensão, referendada, de pretender constituir regiões administrativas em Portugal. Todavia, esta questão nunca deixou de ser um dos assuntos em debate nas diversas instâncias de governo e de administração do país. Portugal, apesar de ser territorialmente pequeno, comparado com outros países, necessita absolutamente de um novo modelo administrativo, facilitador de decisões mais céleres, ajustadas e de proximidade em relação às comunidades. Seja por via de entidades regionais, seja pela dos municípios, Portugal tem de se repensar no seu modelo administrativo para ser eficaz e promover um desenvolvimento integrado e coeso de todo o território nacional. Um dos exemplos evidentes desta ação de descentralização e seus benefícios, são as Entidades Regionais de Turismo. Todas elas subordinadas ao Turismo de Portugal, desenvolvem projetos de proximidade e de resposta à diversidade de projetos turísticos próprios de cada região. E, no cômputo geral, têm sido um sucesso. Ora, este exemplo vale para outras áreas e ações de governo e de administração. Caso contrário, uma boa parte do território nacional continua dependente de decisões centralizadas que desconhecem a realidade objetiva e a especificidade de cada região, quer ao nível das suas potencialidades, quer das suas carências. Com a agravante de uma política que tende a privilegiar as zonas mais habitadas, por uma questão de sobrevivência político-partidária. Neste sentido, como ainda há dias alguém referia, no contexto das últimas Jornadas de Pastoral do Turismo, se Portugal fosse como um barco, estaríamos já todos afogados no oceano. Isto para evidenciar o desenvolvimento e investimento no litoral, em desfavor das regiões do interior. Questão semelhante se colocava, há dias, no “Prós e Contras”, da RTP 1, ao olhar para a realidade do Alentejo, particularmente mais interior.

   O fenómeno da centralização, em Portugal, conta já com séculos de história. Se remontarmos ao séc. XVII e, concretamente, à corte de D. João IV, no contexto da afirmação da soberania de Portugal relativamente a Espanha, após o domínio Filipino, reparamos como, ao invés dos tempos anteriores, se intensificou a centralização do poder, com recurso aos Conselhos, que apoiavam o rei na sua governação.[1] Ora, todas as casas senhoriais, para garantirem o seu poder de influência, passam a aproximar-se da corte, passando mesmo a residir na capital, sem abandonar as suas propriedades locais. Neste contexto, ainda que o poder local seja reforçado, nomeadamente no que toca à justiça, com os denominados «juízes de fora»[2], a administração ficou cada vez mais dependente da coroa e dos seus conselheiros.

   Esta modalidade de governo permaneceu, mesmo com regimes distintos, após a passagem do regime senhorial para a monarquia constitucional e, posteriormente, para a república, bem como, ainda, para o Estado Novo, que apesar de ter criado as diversas corporações, por setores de atividade económica, se fundou na Constituição de 1933, que centralizava, uma vez mais, o governo da nação.[3]

   Ora, nos tempos que correm, e após uma nova mentalidade administrativa, Portugal carece de novos meios de administração e de governo: seja por via das regiões; das comunidades intermunicipais, com poderes mais efetivos; ou pelo reforço do poder dos municípios. Só assim o país se desenvolverá globalmente, corrigindo as assimetrias político-económicas e sociais que provêm do passado.

   Um bom exemplo desta necessidade de descentralização é a urgência de uma nova gestão local das florestas: com a prevenção de incêndios; o seu combate; e, atualmente, a necessidade da reflorestação da imensa mancha verde que foi dizimada com os últimos incêndios. Tenho constatado em várias pessoas, entendidas nestas matérias, alguma desconfiança face à capacidade de realizar o trabalho que urge fazer. Isto porque o estado central não consegue, de per si, mobilizar instituições e pessoas neste autentico desígnio nacional. Será na proximidade, com as comunidades intermunicipais e muito particularmente com os municípios que este desígnio se poderá operar. Para tanto, carecemos, nesta matéria, da descentralização de meios – legislativos e económicos, que obriguem e viabilizem os projetos a executar. Tal tarefa só se realizará na proximidade! Tanto mais que o envolvimento, absolutamente necessário, dos cidadãos, só acontecerá através de instâncias de poder locais. A reflorestação do país bem poderia servir de teste a uma certa forma de descentralização, não obstante outras que, com sucesso, já operam neste sentido.



Pampilhosa, 16 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(63ª Reflexão)



[1] Cf. PROENÇA, Maria Cândida – Uma História Concisa de Portugal. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2015, p. 386.
[2] Cf. Ibidem, p. 390.
[3] Cf. Ibidem, pp. 671 – 672.

Mês das Almas


MÊS DAS ALMAS
 
   O mês de Novembro é conhecido, na tradição cristã, como o mês das almas. Precisamente porque se inicia este ciclo de trinta dias com a Solenidade de Todos os Santos e, muito particularmente, com a Comemoração de todos os Fiéis Defuntos. A que não é estranho, de igual modo, o final do ciclo litúrgico anual, com um particular enfoque na dimensão escatológica da vida – vida humana e de toda a criação. Assim, o convite litúrgico é o de olharmos para as realidades temporais, mas na consciência de que elas não são eternas e que a nossa meta se compreende na transcendência.

   A oração pelas almas – o mesmo é dizer, a oração pelos defuntos, na sua integridade e corporeidade, para ultrapassarmos os conceitos neoplatónicos de separação de corpo e alma – centra-nos particularmente na solicitude para com as almas do purgatório. Ora, falar precisamente de purgatório coloca-nos aparentemente numa posição de choque com a mentalidade hodierna, porquanto muitos consideram o termo purgatório ultrapassado; e poucos são os que acreditam no, então chamado, «fogo do purgatório». Entendamo-nos então: a palavra purgatório, provém do latim purgatoriu, significando purga ou purgativo, que, por sua vez, significa purificar, limpar. Ora, o purgatório não é mais do que um processo existencial de purificação para participarmos na santidade de Deus. Todos nós, homens, fruto da nossa condição frágil, cometemos pecados (as nossas múltiplas fragilidades), o que nos constitui como seres limitados. Por seu turno, só Deus é santo! A santidade é uma especificidade de Deus. Assim, o humano e o divino parecem ser realidades intocáveis, pela sua diferenciação. Que não o são, efetivamente, pois Deus, na Sua bondade, enviou o Seu Filho, que se fez homem – «em tudo igual a nós, exceto no pecado» (cf. Hb. 2, 17) - para nos elevar à condição divina. E Jesus, pela Sua morte e ressurreição – o seu Mistério Pascal -, tornou-se para nós o Cristo, elevando a nossa humanidade a esta condição divina. De tal condição participam todos os batizados, porquanto mediante este dom gratuito de Deus fomos tornados membros de Cristo, participando da Sua própria vida. Assim, o purgatório não é mais do que esta plena configuração com Cristo; dom, recebido no batismo, que nós manchámos ao longo da nossa história, necessitando agora de uma purificação plena. Por outro lado, a conceção literalista do purgatório como fogo provém das conceções teológicas tardo-medievais, que representavam deste modo o lugar de purificação, assumindo, desta forma, a simbologia bíblica. O purgatório não é um lugar, mas sim uma realidade existencial; além disso, não se trata de fogo, mas sim de um total envolvimento da graça divina que nos confronta com a nossa humanidade frágil. Daí que ao referimos a dor – sempre com as categorias humanas -, apenas podemos aludir à dor que advém da consciência da fragilidade humana diante da santidade de Deus. Assim, nós rezamos para que Deus purifique os que fazem esta experiência, numa dimensão meta-histórica, concedendo-lhes plenamente a Sua própria santidade. E se há fogo, há apenas um: o do amor de Deus pelos homens, que o levou a dar-nos o Seu próprio Filho e a conceder-nos a graça de sermos igualmente Seus filhos.

   Sabendo que nos referimos a realidades que nos transcendem, mas reveladas em Jesus Cristo, mesmo que o Evangelho nunca refira explicitamente o purgatório e Jesus, na sua pregação, nos aponte o fogo purificador apenas como imagem; a verdade é que, ainda antes da revelação cristã da vida eterna, todas as culturas referem processos de purificação, como meios de alcançar a eternidade. Apenas as culturas moderna e pós-moderna, com as suas raízes no racionalismo e empirismo racionalista e, ultimamente, fundamentada na enorme capacidade tecnológica, transferiram paulatinamente o conceito de eternidade da sua realidade transcendente para uma dimensão imanente. Isto é, rejeitando a transcendência, procura-se na realidade material e histórica a plenitude da vida – a eternidade. Não obstante este desenvolvimento tecnológico, o envelhecimento e a falência histórica da vida serão sempre uma realidade, segundo os especialistas. Pelo que este ciclo mensal e as suas características, mesmo que esbatidas pela cultura atual e até pela vida eclesial, é uma oportunidade de olharmos para o sentido da vida e para a sua meta plena. A vida não se perpetua definitivamente na história; então qual o seu sentido? Se, para alguns, ela termina com o fim da história pessoal, o que significaria sempre a máxima frustração humana; para outros ela compreende-se à luz de uma eternidade revelada. Todavia, este tempo, para todos, poderá ser uma oportunidade de questionamento interior, face às inquietações fundamentais que sempre persistiram em cada coração humano: para onde caminho eu? Afinal, qual o sentido e o fim último da minha vida?

Pampilhosa, 09 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(62ª Reflexão)

 

 

 

 

Água


ÁGUA 

    Nestes dias tenho-me sentido particularmente interpelado pelas questões em torno da sustentabilidade e usufruto de um produto essencial à vida – a água. Foram as Jornadas de Pastoral do Turismo, com um painel sobre o ambiente; foi o programa, do canal 1 da RTP, «Prós e Contras», com a temática do desenvolvimento do Alentejo, a problemática da seca persistente, em que temos vivido, e a sustentabilidade nos reservatórios da água, nesta região do país; e é ainda a releitura da Carta Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si. Uma variedade de eventos e leituras que me fazem olhar de outra maneira para um bem essencial que, tão poucas vezes, valorizamos suficientemente.

   Não me vou deter na importância da água, sobejamente conhecida de todos nós. Aliás, basta-nos confrontarmo-nos com uma breve interrupção do fornecimento deste bem indispensável, para todos nós sentirmos quanto dependemos dela, não só como elemento essencial à vida, mas também para múltiplos usos, que vão desde a higiene às demais formas de utilização. E não me refiro já a quem necessita absolutamente da água para o seu trabalho, desde a agricultura, às demais diversas formas de laboração, de pequenas, médias ou grandes indústrias. A água está omnipresente nas nossas vidas e dependemos dela.

   Mas a água é um bem escasso. Sem alarmismos, mas conscientes, sabemos que os períodos de seca, como o que estamos a atravessar, tendem a alargar-se numa perspetiva de futuro. Este é o parecer dos estudiosos do ambiente, ao analisarem as consequências do aquecimento global. É certo que em todos os períodos da história tivemos alternância entre períodos mais húmidos e mais secos, propiciando melhores ou piores condições económicas, sobretudo quando o sustento assentava na produção da terra. Contudo, hoje a realidade é distinta: não se trata apenas de um elemento natural, nas alternâncias climáticas, mas sim de uma consequência da massiva intervenção humana, devido a uma feroz industrialização e suas consequências ambientais.

   Neste quadro, atingimos todo um patamar de bem-estar social e de condições de vida de que não queremos abdicar. Todavia, se não alterarmos os nossos hábitos de consumo, dificilmente conseguiremos manter tal qualidade.

   Muitos de nós, por certo, diremos que esta é uma realidade que não nos toca diretamente, porquanto não é ainda um problema imediatamente nosso. Para além da necessária solidariedade – e mesmo partilha deste bem essencial! – com aqueles que sofrem as consequências da falta de água, temos de nos consciencializar de podemos chegar a um tempo de racionamento deste bem fundamental, mas escasso. Ou melhor, que tende a escassear. Neste sentido, e antes que tal tenha de acontecer, urge tomarmos medidas de poupança que nos possam beneficiar a todos. Poupar água, hoje, não será apenas uma medida económica; trata-se, sim, de um dever cívico, na prossecução de assegurar a todos um verdadeiro bem comum. Com verdade, nos recorda o Papa Francisco, na sua encíclica Laudato Si: «É bem conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo [de água] dos países mais desenvolvidos e dos setores mais ricos da sociedade, onde o hábito de “desperdiçar e deitar fora” atinge níveis inauditos» (LS. 27), a que acrescenta: «A disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo, mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves consequências a curto e a longo prazo» (LS. 28).

   Ora, também neste contexto, do usufruto inteligente e sustentável deste bem essencial, temos de viver aquele princípio defendido, ainda, pelo Papa Francisco, dirigido particularmente aos cristãos, mas também aos homens de boa vontade: necessitamos, na hora presente, de viver uma autêntica «conversão ecológica» (cf. LS. 217), para que a ninguém falte o bem essencial, que é a água, sabendo, também aqui, que «a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar todos» (LS. 93).

 
Pampilhosa, 02 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(61ª Reflexão)

 

 

 

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Questão de Género


QUESTÃO DE GÉNERO!

   Os tempos que correm são particularmente complexos, senão mesmo vertiginosos, ao nível da conceção da pessoa e das suas características essenciais. Vivemos uma pretensa liberdade que poderá ter como consequência uma desagregação psicoafectiva e sexual de muitos jovens, neste período de maturação.

   A teoria de género, que já aqui considerámos, insiste na revisão dos papéis sociais atribuídos ao masculino e ao feminino, considerando que estes foram construções sociais fixistas, que agora urge mudar, conferindo a cada um a liberdade de escolha da sua própria conduta. Todavia, esta teoria – sempre em aberto – tem conduzido a conceções inacreditáveis no que toca à definição de pessoa e à sua autodeterminação quanto ao género, ou géneros, a assumir na conduta pessoal. Ao ponto de, no Canadá, um pai ter conseguido autorização legal para registar o seu filho (e ao afirmá-lo assim, estamos já a referir o masculino!) como tendo um género neutro. Ora, na vida humana não existe o neutro, nem física, nem psíquica, nem afetivamente; nem tão pouco socialmente. O neutro existe apenas, a par do masculino e do feminino, nalguma linguística e nunca na experiência humana.

   Se é certo que a nossa construção pessoal é fruto do meio e dos valores sociais que nos são incutidos, resulta também – como substrato – da nossa identidade biológica, determinada pela natureza. Negá-lo será negarmo-nos a nós mesmos. E, neste momento, a teoria de género avançou exatamente por aí: no afã de conquistar uma pretensa liberdade social, chega a negar a própria identidade biológica. Neste sentido, já não se trata apenas do distanciamento em relação a outras conceções antropológicas, consideradas como conservadoras, como a da Igreja, entre outras, mas sim de um negacionismo daquilo que empiricamente é verificável pela biologia.

   Ora, em nome de uma liberdade absoluta nega-se a pessoa, na sua identidade. O que, em boa verdade, deixa de ser autêntica liberdade, porquanto não serve a realização humana, ao serviço da qual a liberdade se compreende.

   O mais grave destas teorias não é apenas a desestruturação da sociedade e, logo na sua base, da família; mas sim o atentado contra a pessoa humana, a quem se nega uma identidade psicoafectiva e sexual que se vai maturando na inter-relação pessoal e social, mas tendo por base as características biológicas de cada um.

   Neste contexto, em que as distinções são sempre absolutamente necessárias, para não nos confundirmos, outra coisa é a consideração de vivências homoafetivas ou bissexuais. Estas realidades marcam indiscutivelmente um bom número de pessoas e a ciência, ainda hoje, não nos consegue dizer se o seu fundamento é apenas fruto de uma não diferenciação do mesmo género, no processo de maturação, com enfoque na adolescência, ou se existem causas genéticas para tal orientação. Não obstante, não há a negação de um género – masculino ou feminino -, mas sim a tendência para a relação física e afetiva com pessoas do mesmo sexo, ou de ambos os sexos. Estas pessoas, em tais circunstâncias, devem ser acolhidas e respeitadas na sua vivência; ressalvando-se o direito social de quem vive a homoafetivade em estabelecer relações de compromisso pessoal em conformidade com a sua identidade profunda. Forçar alguém a viver o que não sente é também uma violência; e o passado está cheio de realidades penosas, destrutivas de pessoas conjugalmente desajustadas, bem como de relações tensas, onde, não raro, predominam a ansiedade e a mentira.

   Mas cada realidade necessita de um enquadramento próprio, sem confusões, para que se procure sempre o bem da pessoa.

   Ora, neste enquadramento, salvo raríssimas exceções, permitir que um jovem, em maturação física, psíquica e afetiva, tome decisões irreversíveis na sua vida, como é a da mudança de sexo, como defendem algumas forças políticas nacionais, que apresentaram já um projeto lei, determinando que aos dezasseis anos de idade um jovem se possa autodeterminar quanto ao seu género, é algo de muito perigoso. Aliás, o Conselho Nacional de Ética pronunciou-se sobre esta matéria, definindo-a como «inadequada»; e os Bispos Portugueses manifestaram preocupação em relação a tal projeto lei, sobretudo sem que haja um debate profundo sobre tal matéria. Questionar este projeto de lei e aprofundar os seus fundamentos antropológicos é um dever de todos, em sociedade. Pois o que se pretende é sempre e tão só o bem da pessoa; porquanto a pessoa é que tem de estar no centro das nossas preocupações!


Pampilhosa, 26 de Outubro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(60ª Reflexão)

 

 

 

Da Tragédia à Oportunidade


DA TRAGÉDIA À OPORTUNIDADE!

   Este mês de Outubro revelou-se como o mais inclemente deste últimos anos, em Portugal: as elevadas temperaturas para a época, a seca extrema em muitos locais e, por fim – e o mais grave! – os horríveis incêndios que deflagraram por toda a região centro e norte do país, neste último domingo, com um número elevado de perdas de vidas humanas e de múltiplos bens de primeira necessidade para muitas famílias. Um domingo «horribilis», qual autêntico inferno, que se estendia a todo o lado!

   O momento presente é de chorar os mortos e de rezar pelas suas almas, bem como de apoiar os que viram os seus bens destruídos, para que possam, o mais breve possível, refazer as suas vidas.

   Mas esta tragédia não pode deixar-nos imóveis, sarando apenas as feridas. Tem de se constituir como a oportunidade de, efetivamente, pensarmos em novas ações de prevenção, para além da identificação séria e real das causas que estão na base de tantas ignições. Desde logo identificar essas causas e agir em conformidade, custe o que custar. E quando se tratar de crime, agir em conformidade, pois este deve ser punido e não aligeirado, como infelizmente parece acontecer, eventualmente pelo enquadramento da moldura penal, que deverá corresponder à gravidade das situações em causa.

    Posto isto, há que promover ações concretas de reorganização das florestas e da sua reflorestação. Portugal está desfigurado! É necessário, agora, refazer as suas paisagens: a sua mancha florestal e algumas das suas aldeias. As medidas legislativas que compreendem tais ações existem já; importa agora fazê-las passar à realidade. Sabendo, todavia, que temos de ir ainda muito mais longe: é urgente fazer a limpeza dos espaços que envolvem as casas, sem deixar tais tarefas para o verão do próximo ano; e é necessário utilizar novas espécies arbóreas para a reflorestação e, muito em particular, para os espaços envolventes das múltiplas aldeias, recorrendo àquelas que limitam a ação do fogo e, por isso, são denominadas árvores bombeiro ou corta-fogo, ocupando um perímetro razoável em torno destas aldeias, para que possam ser mais seguras, protegendo as suas habitações. Por outro lado, é urgente um ordenamento das florestas que seja efetivo: com exigência junto dos proprietários; com empenhamento dos municípios e das autoridades locais; mas igualmente com incentivos públicos a uma reflorestação equilibrada e inteligente. Criando-se condições para uma gestão mais alargada das florestas, que poderá compreender uma realidade semelhante ao modelo cooperativo.

   Estas ações, ou outras, que se julgarem necessárias, segundo os técnicos, é um imperativo moral para connosco, salvaguardando-se, assim, a tranquilidade futura. Mas é particularmente um dever para com quem perdeu a sua vida nestes incêndios e para com quem, neles, perdeu muito dos seus bens.

   É a segunda vez, este ano, que Portugal chora as vítimas dos incêndios. Não queremos voltar a chorar, num futuro próximo, as consequências humanas e materiais de tais ocorrências. Assim, agir, na hora presente, impõe-se-nos a todos! Autoridades e civis! Como bem afirmava o Senhor Arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, «basta de discursos e boas intenções! É imperioso apurar responsabilidades e agir».

   Paralelamente a estas ações, é fundamental implementar medidas de educação ambiental, para que a agressão à floresta e, consequentemente, à vida humana, se converta em defesa de ambas. Uma punição de criminosos incendiários, alguns deles recorrentes, bem poderia passar por aí, com formação teórica e serviço prático nas florestas portuguesas. É que para evitar males futuros, temos de punir severamente quem beneficia do fogo e de reeducar quem perdeu a sensibilidade para a defesa do património natural que nos é comum! Portugal necessita de todo o nosso empenho e de cidadãos dotados de nova mentalidade!


Pampilhosa, 19 de Outubro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(59ª Reflexão)

 

 

Poder Local


PODER LOCAL

   O início deste mês de Outubro foi marcado, a nível nacional, pelas eleições autárquicas – para as Câmaras Municipais, respetivas Assembleias e Assembleias de Freguesia. Uma verdadeira expressão da democracia, com a participação dos eleitores, dos múltiplos eleitos e das demais listas concorrentes aos cargos locais, de norte a sul do país. Com efeito, o poder local reveste-se de características muitos próprias, de entre as quais podemos salientar a proximidade, a descentralização, a cidadania e o controle democrático mais eficaz. Na verdade, uma das características fundamentais do poder local é precisamente a proximidade, com a sua capacidade de resolução próxima das necessidades das pessoas e das comunidades. Constituindo-se esta numa das características mais importantes; mobilizadora, por isso, de uma maior participação dos eleitores locais. Por outro lado, as autarquias locais constituem-se como sedes de poder que cooperam na realização das orientações comuns que provêm do estado central. Em muitas matérias, são responsáveis pela sua implementação nas comunidades locais e na mobilização política e administrativa enquanto agentes locais de autoridade. Convém, todavia, que esta articulação entre competências do poder central e do poder local seja ampliada, no sentido de se operacionalizarem decisões políticas e administrativas, facilitadoras da implementação de muitas das diretivas decididas nos órgãos de soberania central. A proximidade, uma vez mais, possibilita a eficácia na implementação de reformas administrativas e num governo mais eficaz do todo nacional. Neste sentido, o poder local nunca pode ser visto como opositor, que reclama ou compromete o poder central, mas sim como cooperador, trabalhando ambos num serviço mais célere e eficiente aos cidadãos e às respetivas comunidades locais. Muitas têm sido as manifestações de sensibilidade política no sentido de descentralizar serviços, nos vários quadrantes políticos, e que urge implementar, para que o exercício do governo se torne mais célere, eficaz e menos burocrático. Devemos considerar, ainda, que o exercício do poder local promove uma mais ampla participação cívica, porquanto está em causa o governo da comunidade de pertença. E esta mobilização é notória nas listas dos que concorrem a estes cargos públicos, bem como na participação dos eleitores nas eleições autárquicas, não obstante os elevados índices de abstenção que ainda podemos registar, embora menor nestas eleições. Por fim, há igualmente um exercício de democracia mais evidente nas eleições locais: as pessoas conhecem melhor os programas eleitorais, conhecem as pessoas que se propõem aos cargos, bem como as suas capacidades de realização dos programas a sufragar; tendo ainda, mais facilmente, a possibilidade de avaliar a eficácia de governo local, podendo efetuar sempre, no fim de cada mandato, um juízo sério sobre o exercício do poder assumido por aqueles que foram investidos nos cargos. Não obstante, temos ainda de caminhar bastante no sentido de assegurar esta escolha objetiva. Para tanto – julgo - deveríamos privilegiar mais as listas nominais, mesmo que dependentes do espetro dos partidos políticos nacionais, e não tanto as listas de partidos, onde, inclusive, os candidatos estão ausentes, em termos de boletim de voto. Por outro lado, os programas eleitorais deveriam constituir-se como elemento chave de escolha, mais do que a opção partidária de cada eleitor. A escolha, cada vez mais ampla, de listas de independentes, vem sublinhar alguns destes aspetos, conquanto não sejam listas de dissidentes partidários que se propõem à votação, excessivamente centradas no culto de algumas pessoas.

   Volvidos mais de quarenta anos sob a renovação do poder local, como poder democrático e não apenas administrativo, há que aprofundar as suas competências e possibilidades. Por certo, um poder local forte, eficaz, com mais amplos poderes de ação e fiscalizado pelos cidadãos, contribuirá para um governo mais equitativo, mais eficiente e facilitador de um desenvolvimento global do todo nacional.

   Terminados os escrutínios, num período em que os novos eleitos são agora empossados nos seus cargos, resta-nos desejar as maiores felicidades a todos os que assumem funções de governo, na esperança de que os seus programas eleitorais sejam levados à prática, a bem das pessoas e das comunidades que servem.

Pampilhosa, 12 de Outubro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(58ª Reflexão)

 

Recomeço


RECOMEÇO

   O mês de Setembro é caracterizado por múltiplos recomeços: recomeçou um novo ano letivo, para as nossas crianças e jovens, para os seus pais, para os seus professores e auxiliares de educação; recomeçaram as atividades de vários grupos e associações, depois da época estival; e recomeçou um novo ano pastoral, para as nossas comunidades cristãs. Este ano, sob o impulso de um novo Plano Pastoral, na Diocese de Coimbra, que nos conduzirá ao longo de todo o triénio, até 2020. Diríamos que a vida retoma aquela normalidade que caracteriza a maior parte do ano, enquanto permanência de uma certa forma de estar e de viver.

   Mas falar de recomeço pode deixar-nos numa atitude simples de repetição de vivências anteriores, de conformação com certas formas de estar e de agir, num quase mimetismo do que já passou, pese embora a novidade de cada tempo.

   Nos séculos pretéritos, esta normalidade do tempo e das suas ações era muito mais evidente, quando após as romarias de verão e os pagamentos aos senhores, feitas por ocasião das celebrações do São João e do São Miguel, coincidindo esta última com o fim das colheitas e a distribuição dos proveitos por todos os seus beneficiários, os pobres camponeses se lançavam de novo à terra, para viver um novo ciclo de trabalho duro, na esperança de que o novo ano fosse ainda mais favorável.

   Certo é que a hora presente não nos permite esta repetição que podemos como que entrever nesses séculos passados. A força dos meios tecnológicos, particularmente de comunicação, como que aceleram o tempo e colocam-nos permanentemente em estado de vigília, atentos à constante novidade que o mundo plasma diante de nós. Todavia, apesar destes estímulos – para o bem e para o mal! – que advêm dos meios de comunicação, corremos o risco de interiormente permanecermos numa inércia normalizadora, que já não nos permita definir novos objetivos, novas metas e novos desafios a alcançar. Ora, cada recomeço é exatamente isso mesmo: um começar de novo! E se, pela força do dinamismo da história, com os seus tempos e os seus ritmos, somos levados a viver cada ciclo; a autêntica sabedoria está em não nos deixarmos arrastar simplesmente pelo tempo, mas a vivê-lo na sua novidade, singularidade e renovada oportunidade. Neste sentido, mais do que uma imposição exterior, o autêntico recomeço resulta verdadeiramente de uma decisão interior. Decisão de crescimento humano, num desenvolvimento pessoal integral, que permita trilhar os caminhos da autêntica realização, crescendo como pessoas e realizando objetivos que concretizem essa permanente maturação humana. Oportunidade igualmente de revisão de vida, de modo a que tudo o que é empecilho a esta humanização se afaste, reformulando-se modos de ser e de estar, mais condizentes com a dignidade pessoal, com o bem dos outros e a paz que queremos na relação com os demais. Um tempo de uma nova criatividade, não apenas pessoal, mas também de serviço aos outros, num espírito de autêntica fraternidade, para que o mundo cresça com o nosso crescimento. Um tempo novo para abrir novos horizontes pessoais, mas igualmente comunitários e sociais, num empenho sincero na busca de um verdadeiro bem conjunto, que seja expressão de uma comunidade que pretendemos mais humanizada e fraterna. Afinal, um tempo de oportunidade singular, que nos é dado como dom, e que urge saber viver!

   Recomeçar, para, no recomeço, realizarmos aquela expressão de Miguel Torga, no seu poema «Sísifo», que nos convoca a sermos inteiros:

   «Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade».
 

Pampilhosa, 28 de Setembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(57ª Reflexão)

 

 

 

Bondade


BONDADE

   No decurso da semana passada e com o início desta, que estamos a viver, fui-me confrontando, assiduamente, com a palavra bondade. Uma palavra que radica, em última instância, na autenticidade do amor. O termo bondade, derivado do latim bonitatem[1], tem como definição própria a disposição natural para fazer o bem, a qualidade do que é bom, mas igualmente a brandura, e a benevolência.[2] Mas, na sua significação, compreende ainda a amabilidade, aprofundando assim o seu conceito e relacionando-o com o amor, porquanto este é a base desta característica ou atributo da bondade.

   Vem isto a propósito de três momentos celebrativos e existenciais destes oito dias: a expressão de S. Paulo à comunidade de Roma, numa das leituras do vigésimo terceiro domingo do tempo comum, em que o apóstolo exortava os romanos, dizendo-lhes: «não devais a ninguém coisa alguma, a não ser o amor de uns para com os outros» (Rom. 13, 8); a notícia inesperada da morte do Bispo do Porto, Senhor D. António Francisco dos Santos, e consequentes reações a tão fatídico acontecimento; e, de novo, a liturgia deste último domingo, com a resposta de Jesus à interpelação de Pedro, que o questiona sobre quantas vezes devemos perdoar, se até sete vezes ou eventualmente mais, ao que Jesus responde: «não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete» (Mt. 18, 21 – 22); o que, na simbologia bíblica significa sempre – em quantidade e em qualidade. Isto é, perdoar sempre que necessário, com verdade e autenticidade, sem que reste qualquer rancor ou ressentimento.

   Apesar do seu contexto litúrgico e eclesial, estas expressões e factos valem para todos nós, e não apenas para os cristãos, porque são universais. Desde logo, porque o amor tem de estar na base de todas as nossas vivências pessoais e interrelacionais, enquanto alicerce sólido de toda a nossa construção pessoal e social. Num tempo em que tendemos para a autossuficiência e para o individualismo, Paulo vem recordar-nos algo de essencial: que o amor é uma dívida constante de uns para com os outros; consciente de que ele é um dinamismo permanente, nunca acabado, a necessitar sempre de novos gestos e cuidados. Acolher este convite de Paulo significa trilharmos caminhos de autêntica realização e de felicidade. Ora, uma das características deste amor é exatamente a bondade, enquanto atenção, respeito e proximidade construtiva na relação com quem nos é próximo. De igual modo, o perdão sem reservas, como afirmava Jesus, no Evangelho de Mateus, conduz a uma sociedade benevolente, onde, apesar das nossas diferenças e desencontros, é sempre possível refazer as nossas relações humanas, com base na humildade que conduz à permanente amabilidade e a uma autêntica fraternidade. Assim, uma vez mais, a bondade se reafirma por oposição a toda a forma de maldade, de iras, de ódios, desrespeitos ou de rixas. É, uma vez mais, o convite ao amor, sublinhando a bondade na relação de uns com os outros.

   Diríamos, eventualmente, que tais princípios são ideais humanos inalcançáveis! Serão certamente um desafio constante às nossas vivências e suas motivações. Mas não são algo de impossível. Bem pelo contrário: são luzeiros permanentes a iluminar os nossos caminhos, para que por eles cheguemos à felicidade para que fomos criados.

   Na ocasião da morte do Sr. D. António Francisco dos Santos, ao tomar conhecimento de tão amarga notícia, a primeira palavra que me ocorreu para caracterizar a sua pessoa foi precisamente a afabilidade. Qualidade que se insere no âmbito da bondade. E foi precisamente esta última qualidade - a sua bondade - que mais se afirmou, ao longo dos dias da sua celebração exequial, e no legado que tão naturalmente nos deixou. A candura do seu olhar, a atenção à singularidade de cada um, a benevolência, a doçura no trato, o sorriso afável e a capacidade de desculpar, mesmo nas situações mais difíceis (incluindo aquelas que se inscreveram no seu múnus de pastor), são uma herança de uma profunda humanidade, capaz de tocar o coração de tantos que, mais direta ou indiretamente, privaram com este grande homem e grande bispo. Os testemunhos neste sentido são múltiplos, desde as mais altas figuras de estado, ao povo simples que teve a graça de o ter como pastor. Para mim – certamente para muitos de nós! – ficou esta certeza, ao recolher tão belo testemunho: a bondade é uma das qualidades humanas que maior beleza confere à nossa humanidade. E que mais enriquece as nossas relações interpessoais. O senhor D. António, com a sua vivência simples e humilde, mas tão próxima de todos, assegurou-nos, afinal, que a bondade é realmente possível!
 

Pampilhosa, 21 de Setembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(56ª Reflexão)



[1] Cf. Voc. Bondade. In Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa. Disponível em http://www.michaelis.uol.com.br
[2] Cf. Cf. Dicionário Priberam. Disponível em: http://www.priberam.pt
 

Ensino Superior


ENSINO SUPERIOR

   Este ano o número de jovens candidatos ao ensino superior aumentou, fazendo com que as vagas disponíveis, para este nível de ensino, fossem inferiores ao número dos que se candidatavam. Com efeito, há sete anos que não entravam tantos alunos no ensino superior.

   Indiscutivelmente, estamos perante um efetivo sinal animador; muito positivo para os jovens, denotando o investimento que estes pretendem fazer na sua formação; para as famílias, que parecem retomar confiança nalguma estabilidade económica, investindo na formação dos seus filhos; e para a sociedade, que vê retomar o investimento na qualificação dos seus jovens, enquanto capital social ímpar, pois a formação é a base de toda a ação renovadora de qualquer sociedade.

   Contudo, não basta que nos encerremos nestes números. É necessário que providenciemos a que estes candidatos, que agora ingressam, possam vir a concluir os seus estudos. Sabendo que para tanto é essencial que as condições económicas e sociais, que parecem animar-se, sejam sustentáveis, no médio e longo prazo, para que as famílias continuem a reunir efetivas condições para manter os seus jovens no ensino universitário. Isto é, que este fator social animador não se resuma a uma situação conjuntural, mas se solidifique, como fruto de uma melhoria económica estrutural, transversal a toda a sociedade portuguesa, tendo como consequência a melhoria nas condições económicas das famílias e, por conseguinte, o investimento em termos da permanência da formação.

   Por vezes tendemos a cair em leituras imediatas, sem uma visão alargada da realidade. Se o número de candidatos ao ensino superior é animador – e é-o, de facto! -, diria que será muito mais animadora a taxa futura de sucesso dos que agora ingressam, com a conclusão dos seus estudos. É que não podemos esquecer que o nível de abandono no ensino superior se tem cifrado, nestes últimos anos, em valores relativamente altos. A título de exemplo, no ano letivo de 2014 – 2015, a percentagem de abandono foi de 8,6%. E se é certo que este se deve a múltiplos fatores, todos temos consciência de que as condições económicas das famílias são o elemento mais determinante para tal abandono.

   Paralelamente a esta questão, das condições económicas, coloca-se uma outra, que me parece vital: a necessidade de adequação do ensino superior universitário e politécnico ao mercado de trabalho, bem como a articulação deste com a diversidade de áreas de formação oferecidas por este nível de ensino e sua integração no mercado de trabalho. Neste aspeto parece-me que ainda estamos muito longe do desejável; não obstante o ensino politécnico, pela sua especificidade, se aproximar mais da realidade empresarial. Registando, por isso, um maior acréscimo de novos alunos. Esta articulação é absolutamente necessária, pois o horizonte da empregabilidade, hoje tão difícil, é um estímulo determinante para a conclusão dos estudos.

   Apesar de persistirem algumas desconfianças, perfeitamente razoáveis, no mundo do trabalho, há que criar a consciência de que a formação é sempre uma ferramenta ímpar, para quem a conclui, e o maior ativo social de que todos podemos beneficiar. Ainda que o emprego futuro não seja aquele que se idealizou com o investimento intelectual realizado, a verdade é que a formação, seja ela qual for, capacita para uma grande diversidade de atividades – direta ou indiretamente ligadas à área de formação -, permitindo um maior sucesso pessoal e em termos profissionais. Devemos, por isso, afastar das nossas mentes a ideia de que não vale a pena estudar, atendendo a que o mercado de trabalho não absorve todos os que concluem os seus cursos. Formar-se é sempre uma enorme mais-valia – pessoal, social e laboral! Não devíamos manter-nos tanto numa mentalidade mais ou menos teleológica, que considera que a formação vale apenas quanto às suas finalidades imediatas; mas sim investirmos numa mentalidade personalista, considerando que a formação vale, como contributo ímpar, para a formação e valorização da pessoa, apetrechando-a, depois, para o exercício de qualquer tarefa.

   No início de um novo ano, desejo as maiores felicidades a todos os que iniciam estudos superiores, bem como àqueles que os vão prosseguir ou terminar!

Pampilhosa, 14 de Setembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(55ª Reflexão)

Silêncios que corroem!


SILÊNCIOS QUE CORROEM!

   Com o final do mês de Agosto, a vida regressa à normalidade das atividades quotidianas, terminando, assim, um tempo de lazer e de descontração que marcou a vida de uma boa parte dos portugueses. O mês de Agosto, mês de férias por excelência, acrescido do mês de Julho e até de uma pequena parte do mês de Junho, deveria ser um tempo autêntico de serenidade, de tranquilidade, de calma, de festa e descontração, de são convívio e de pacificação íntima, após um ano inteiro de trabalhos diversos e de múltiplas responsabilidades: pessoais, laborais e sociais.

   Mas, infelizmente, não foi assim este último mês de Agosto. Para uma boa parte dos portugueses, foi um tempo de angústia, de sobressalto, de verdadeira aflição, de luta; nalguns casos, mesmo, de autêntico desespero! Devido às centenas de incêndios que deflagraram neste período de verão e à intensidade inaudita das suas chamas, vivemos o mês de Agosto numa espécie de «estado de guerra», como o qualifiquei, ao ver tamanha destruição, angústia e luta desigual face a um adversário que parecia agigantar-se cada vez mais. Foi ainda um tempo de devastação inaudita do nosso património florestal – numa área ardida que ascende, neste ano de 2017, aos 75.264 hectares, a maior da última década e a mais elevada de toda a União Europeia -, conjuntamente com tantos bens de cultivo, para não falar já das aldeias ameaçadas, que tiveram de ser evacuadas, e da destruição de casas, algumas delas de primeira habitação! Um verdadeiro horror!

   Mas findo este período, em que todas as energias se canalizaram para o combate às chamas, deixando para depois outras análises ao fenómeno dos incêndios, pontualmente marcado por indicações de causas mais e menos plausíveis, por parte de um ou de outro governante, parece agora cair uma sombra de silêncio sobre estes acontecimentos, tal como acontece no regresso ao trabalho, deixando no passado o que foi a vivência das férias. E ciclicamente habituamo-nos a este fatalismo!

   Ora, é urgente romper este ciclo de silêncio, de falta de responsabilização, de deixar permanecer tudo como está, exigindo-se uma resposta clara e que permita compreender as causas de tamanha tragédia. Os portugueses têm o direito a saber a verdade! E se no seu todo, porque este é um mal que afeta transversalmente a sociedade portuguesa, muito particularmente aqueles que foram lesados, quer nos seus bens, nos seus haveres, quer na sua tranquilidade. Perante tamanho inferno, é necessário conhecer as causas; é necessário responsabilizar quem é responsável e punir quem é criminoso. Esta é uma enorme questão de justiça e de dívida para com os portugueses, particularmente com os muitos que sofreram neste verão. E é igualmente um dever de quem governa, para poder manter a ordem pública e a salvaguarda dos interesses de quem é governado.

    Ora, o silêncio reinante, pautado apenas pela indicação de que foram apresentados a tribunal algumas dezenas de incendiários, regra geral postos de novo em liberdade, não explica nada, nem faz justiça a ninguém. Comporta em si, simplesmente, a capacidade de corroer a nossa confiança em quem detém a autoridade – no governo, porque não é exigente e não aponta razões credíveis que expliquem tamanho desastre; no poder judicial, porque não é suficientemente transparente, nem exigente na sua aplicação até às últimas causas. Para não falar já de autoridades intermédias, cuja falta de empenhamento no apuramento da verdade nos deixa uma sensação de silêncio conivente. Conduzindo tudo a uma desconfiança persistente, tão daninha quanto o silêncio, sobre os possíveis interesses que se movem por detrás desta realidade a que alguém, com responsabilidades públicas, chamou já a «empresa do fogo». Este silêncio tem ainda a desdita de corroer a própria democracia, porque não nos faz iguais perante a lei, retira às autoridades a idoneidade que lhes devia ser reconhecida, e permite que na sociedade fermentem suspeições.

   A par das medidas mais do que identificadas para a ação de prevenção e de revalorização das nossas florestas, que urge implementar, temos direito a saber quais as verdadeiras causas que conduziram a este flagelo, como meio de assunção de responsabilidades sociais e de prevenção de eventualidades futuras. Portugal é uma democracia assente no cumprimento igualitário da lei! Não podemos permitir que alguns – grupos ou pessoas – vivam à margem dessa lei, pondo em causa o bem-estar de todos. Urge assumirmos a verdade e a transparência como meio de credibilidade e de idoneidade para o exercício das mais altas tarefas do Estado. Custe a quem custar! 

Pampilhosa, 07 de Setembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(54ª Reflexão)