domingo, 10 de outubro de 2010

CENTENÁRIO DA REPÚBLICA PORTUGUESA!

A República Portuguesa comemora hoje, 5 de Outubro de 2010, o seu primeiro Centenário. É, efectivamente, um regime político afirmado no tempo, capaz de compreender ainda outros tempos; tantos quantas as várias imagens de tal regime, em Portugal. De facto, a República Portuguesa não tem apenas um rosto; tem, pelo menos, três, coincidentes com a primeira República, com o período Ditatorial e com a experiência Democrática. Em Portugal, tal regime não é uma realidade homogénea, mas como que construído por diversos estratos temporais e ideológicos – a cada tempo correspondem ideias diferentes: revolução, ditadura, democracia! Não é meu intento deter-me, agora, sobre cada um deles, para estabelecer diferenças ou considerações específicas de cada qual; procurando antes – isso sim – olhar a globalidade da experiência Republicana em Portugal. Concretamente, para sublinhar três aspectos que assumo como questionamentos em aberto. Em primeiro lugar, afirma-se a República, na sua implantação inicial, como «a Revolução que foi proclamada por todo o povo antes ainda de decidida a última acção, ou se saber quem alcançaria a vitória…» (“As Constituições de 1911 e os seus Deputados” in Desdobrável Comemorativo do Centenário da República (1910 – 2010)). Se é certo que a Monarquia Constitucional e, particularmente, os seus últimos governos, passaram por graves dificuldades políticas e económicas, a verdade é que os movimentos de opinião republicanos apenas se manifestaram nas principais urbes (ainda que o Republicanismo se tivesse difundido pelas várias cidades do Reino), através de alguns letrados, muito especialmente afectos ao Partido Republicano Português (PRP). A generalidade do povo estava à margem dos processos ideológicos da época; pois, ou não os conhecia, ou simplesmente não os entendia. De resto, perseverava, no povo, uma mentalidade tradicional, conformada com a realidade existente. A República foi gizada e levada a cabo por um conjunto de ideólogos, da elite política e cultural, especialmente afectos aos ideais revolucionários, que se souberam servir da Maçonaria e da Carbonária (esta última derivada da primeira, com intuitos mais radicais, levando a cabo a acção armada, como havia acontecido já, dois anos antes, com o regicídio – cf. António Arnaut, Introdução à Maçonaria, pp. 69 - 70). O povo tanto gritaria pela República, como continuaria a aclamar o Rei, caso persistisse o regime Monárquico, entretanto decapitado (tal é confirmado, pouco antes do 5 de Outubro, pela passagem de D. Manuel II pelas terras Aveirenses, onde foi profundamente ovacionado e extremamente bem acolhido). O povo português, na sua maioria, era iletrado, ou mesmo analfabeto, o que o colocava à margem da decisão da causa pública. Aliás, a primeira República reconheceu-o, concedendo o direito de voto apenas aos minimamente letrados, num processo de restrição de participação cívica singular, face ao praticado anteriormente, na Monarquia Constitucional. De resto, uma inequívoca contradição do novo regime.
Em segundo lugar, a República visava implementar, na esteira do Liberalismo já reinante, os ideais da Revolução Francesa – «Liberdade, Egualdade e Fraternidade» (in “Imagem da República”, 1910 – 2010: República Portuguesa, Brochura Comemorativa do Centenário da República, Museu da Presidência da República). Em sintonia com estes ideais, a primeira Constituição da República Portuguesa afirmava: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária» (“Constituição da república Portuguesa” in Desdobrável Comemorativo do Centenário da República). Ora, é esta afirmação de fundo que hoje nos serve para uma profunda análise da sociedade portuguesa e, consequentemente, para questionar: atingiu a República os seus objectivos? Ainda que tais questionamentos exigissem um espaço mais alargado de exposição, podemos concluir, sumariamente, que realmente não atingiu os objectivos apontados! A República só atingiria os seus fins se os princípios enunciados se tornassem operativos e fossem realidades adquiridas na construção da nossa identidade colectiva. Na verdade, nem a dignidade da pessoa é regra máxima para a estruturação da vida em sociedade, nem a liberdade ou a fraternidade são ditames essenciais para essa organização. Sem nos determos nos tempos pretéritos, atentemos no conceito de liberdade e na sua operacionalização nos tempos que correm: para que exista liberdade é essencial assegurar o direito igualitário à justiça, como salvaguarda da integridade pessoal de cada um e dos seus bens, e como esteio da vivência em democracia. Ora, a justiça – pilar e garantia da liberdade individual e colectiva – é hoje das realidades mais sensíveis e desigualitárias da sociedade portuguesa! Por seu turno, o conceito de igualdade remete-nos para uma certa uniformização social, onde cada um possa assumir, de forma fundamentada e capaz, uma verdadeira intervenção cívica. A este propósito, considere-se o estado da educação e o modo como tem sido assumida pelos sucessivos governos republicanos, no sentido de aferirmos se a intervenção cívica e qualificada (mormente no aspecto laboral), e os benefícios que lhe estão associados, são uma evidência para o Portugal moderno que pretendemos construir! De vários quadrantes chegam indicações de que temos de privilegiar uma educação de qualidade, em detrimento de uma educação estatística. Já no que se refere à fraternidade, ainda que vivendo numa sociedade que contempla o «estado social», a realidade é bem mais dura. A cem anos da implantação da República persistem, em Portugal, mais de dois milhões de pobres (e alguns outros no limiar da pobreza), num universo de cerca de dez milhões que constituem a sociedade portuguesa. Em termos sociais, Portugal tende a polarizar-se – à semelhança de algumas sociedades latino-americanas – em duas classes: a classe rica e a classe pobre, esvaziando aquela que prevalecia como classe dominante – a classe média.
Exposto isto, a pergunta: que lugar para comemorar a República (sem me deter, também, na análise dos períodos anteriores)?
De qualquer forma, e porque a República é, em Portugal, uma instituição centenária, dois aspectos a sublinhar, ao terminar: no período republicano entrámos na União Europeia (ainda que o republicanismo não seja um requisito exigível para essa adesão), o que nos garante a sustentabilidade como nação num mundo cada vez mais globalizado; findos os primeiros cem anos, fica-nos a esperança de que o futuro traga no seu seio o que o passado ainda não foi capaz de construir. A bem de Portugal e dos Portugueses!

Lisboa, 5 de Outubro de 2010
Carlos Alberto da Graça Godinho

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Direito à Profissão de Fé!

Na sequência de algumas opiniões publicadas, nos meios de comunicação, de um ou outro leigo, e mesmo dos nossos Bispos, referindo a legitimidade de a Igreja assumir a sua missão, a ênfase continua a colocar-se, não raro, no serviço social que a Igreja presta a nível nacional. É inequívoco este serviço; e seria catastrófico para o Estado se a Igreja se demitisse destas suas responsabilidades. Sem dúvida que não o fará, na justa medida em que esta acção se insere no cerne da sua vocação.
Mas parece-me, na linha daquilo que se pode subentender das palavras do Bispo do Porto, D. Manuel Clemente, que afirmava, há dias, que o serviço social tem a sua origem na experiência do templo, particularmente na escuta da Palavra, que a profissão de qualquer fé está a montante desta prática social e que é um direito inalienável da pessoa humana. O direito a professar uma fé e a expressá-la pessoal e comunitariamente é um direito da pessoa humana. De tal modo assim é que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia o consigna num dos seus artigos. Refere este documento, estruturante da vida dos cidadãos da Europa: «Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e de celebração de ritos» (Art. 10º. §1 – Liberdade de pensamento, de consciência e de religião).
Ora, neste sentido, cabe a cada sociedade e a cada estado, democraticamente organizado, o respeito indiscutível pelos direitos mais fundamentais da pessoa humana, que aqui estão consignados. Ou seja, o estado tem o dever inquestionável de respeitar a prática religiosa pessoal e a livre associação em comunidade para a praticar.
A Igreja, por seu turno, não tem de se escudar na sua acção social. Sendo este um serviço inquestionável à pessoa humana e à sociedade, é apenas uma dimensão da sua prática e da sua acção. O direito ao culto é algo que lhe é devido! E não será qualquer organização do Estado, particularmente na União Europeia, que pode privá-la desse direito. Estamos todos obrigados ao respeito de normas comuns, mesmo que essas normas se refiram a convicções que não partilhamos. Um estado democrático assenta aqui as suas bases: no respeito pelo direito dos povos. E este é um, de entre tantos outros, que temos de saber assumir, afirmar e reivindicar.
Bom seria que os cristãos, conscientes da sua fé, assumissem como exigência – implicando as instituições públicas – o respeito por um direito que lhes é devido.
É nesta linha que entendo a atitude do presidente francês de salvaguarda de princípios religiosos básicos. E partindo deste mesmo pensamento, acho perfeitamente inaceitável a afronta explícita, ou implícita, que certos governos europeus tentam fazer à Igreja, sejam eles italianos, espanhóis ou portugueses. O respeito pela legitimidade e pela acção de cada um é o único suporte de uma sociedade justa, equilibrada, mas igualmente democrática.

Carlos Alberto da Graça Godinho

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Perspectivas para uma Pastoral das Termas (Resumo)

No intuito de propor algumas reflexões, que sirvam a uma renovada Pastoral das Termas, considerarei, na minha exposição, três aspectos que julgo cruciais para o seu desenvolvimento: a análise da Pastoral das Termas, segundo inquérito elaborado; as orientações da Igreja para a Pastoral do Turismo, em que as termas se inserem; e algumas orientações práticas, emanadas da mesma documentação, reflectidas pessoalmente e adaptadas às comunidades que compreendem espaços termais.
Depois da abordagem de alguns pressupostos e símbolos, concretamente a especificidade da Pastoral das Termas no contexto da pastoral do Turismo, porquanto ela visa responder a uma realidade eminentemente ligada ao conceito de saúde e não tanto a uma dimensão lúdica, recreativa ou cultural, ainda que a possa e deva pressupor, consideraremos a simbologia da água, particularmente na sua visão bíblica, que nos permite introduzir uma concepção global de saúde, que não se limite ao simples bem-estar físico, mas que abre o homem à sua dimensão mais profunda, numa visão integradora de todas as dimensões da existência humana, a que a pastoral terá de responder.
Fundamental para uma adequação de propostas será a análise dos resultados recolhidos do inquérito sobre A realidade das Termas em Portugal e respectiva Acção Pastoral, enviado a todos os párocos encarregados de estâncias termais. Ainda que os resultados obtidos nos permitam simplesmente uma amostragem, pois que responderam menos de 50% dos contactados, podemos concluir alguns dados significativos, como são a tipologia das termas, as faixas etárias que frequentam os espaços termais, a existência, ou não, de relações próximas com as paróquias, os serviços religiosos mais solicitados e as respostas específicas facultadas pelas comunidades paroquias. Pudemos concluir, deste inquérito, que a Pastoral das Termas é eminentemente de tipo celebrativo ou sacramental, que optámos por definir como tradicional, e muito pouco missionária. Ora, a perspectiva que importa incrementar é exactamente esta segunda, em conformidade com a documentação da Igreja para a Pastoral do Turismo, particularmente com as Orientações para a Pastoral do Turismo, do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes. Neste sentido, far-se-á uma reflexão mais alargada sobre as oportunidades de acção em tempo livre; o turismo – e nele o termalismo – como desafio pastoral; algumas acções pastorais a desenvolver, entre as quais se destacam o acolhimento e a formação de novos agentes de pastoral, que comprometam toda a comunidade cristã e, se possível, os próprios agentes profissionais ligados directamente às termas; o relacionamento com as autoridades públicas, no intuito de estabelecer pontos de diálogo que permitam um acompanhamento mais alargado dos termalistas; chegando mesmo a um compromisso com novas dinâmicas de acção que contemplem o respeito pela natureza e seu usufruto, como dom de Deus que podemos contemplar. Por fim, as propostas práticas a apresentar, pretendem passar do patamar celebrativo ou sacramental, ainda que a Eucaristia, particularmente a dominical, desempenhe aqui lugar central, como nas mais diversas realidades eclesiais, para uma dinâmica mais aberta à comunidade, tendo em consideração quem nos visita, os agentes profissionais que trabalham no termalismo, o trabalho em equipa pastoral, para além de muitos outros elementos concretos que facilmente podem ser assumidos pela Pastoral das Termas e ser ponto de encontro da Comunidade que acolhe com aqueles que são acolhidos. Preocupação fundamental é a de que, quem chega, possa sentir como sua, ainda que transitoriamente, a Comunidade Cristã de acolhimento. Comunidade aberta à relação interpessoal, à partilha de experiências, à reflexão, à revitalização da vida sacramental e de aprofundamento da fé. Toda a perspectiva de fundo será de assumir, como indicada, a dinâmica missionária, que permita ao termalista uma revitalização da sua vida espiritual, ao mesmo tempo que a revitalização física e de bem-estar que procura nas estâncias termais. Neste sentido, as paróquias não poderão ficar à espera de quem procure os seus serviços, mas deverão ser capazes de definir meios para ir ao encontro de quem chega, franqueando-lhes as suas portas e fazendo propostas objectivas que ajudem os termalistas a viver o tempo de descanso, e de tratamentos, como um tempo propício para um renovado encontro consigo, com os outros e com Deus.

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho
Pároco de Luso

Publicado in Agência Ecclesia



terça-feira, 18 de maio de 2010

Os «novos» meios de comunicação!

O Papa Bento XVI, na sua mensagem para o 44º Dia Mundial das Comunicações Sociais, chama a atenção dos presbíteros para as novas oportunidades de anúncio da Palavra de que hoje dispomos. Sem confundir meios com fins, o Papa é peremptório ao afirmar que o mundo digital «oferece ao sacerdote novas possibilidades para exercer o seu serviço à Palavra e da Palavra». Aliás, o Papa considera que estes novos meios são «desde há muito tempo» os «instrumentos ordinários através dos quais as comunidades eclesiais se exprimem», não apenas entrando em contacto mais fácil com as pessoas que as constituem, mas mesmo como «formas de diálogo mais abrangentes». O Papa não deixa, ainda, de insistir que «este é um dos caminhos onde a Igreja é chamada a exercer uma "diaconia da cultura" no actual "continente digital"». As palavras são elucidativas sobre a necessidade de, hoje, cruzarmos os limitados instrumentos das nossas comunicações e nos abrirmos a uma linguagem universal, com públicos diversificados, numa experiência muito mais vasta de possibilidades de proposta da Palavra. Não apenas de palavras, mas sim da Palavra. Daí que o Papa insista, também, que não basta estar no mundo digital apenas para marcar presença, mas sim com um verdadeiro sentido missionário, onde o presbítero faça «transparecer o seu coração de consagrado».

terça-feira, 30 de março de 2010

Os novos «fariseus»!

Os desenvolvimentos noticiosos a propósito dos casos de pedofilia na Igreja fizeram-me vir à memória o Evangelho do V Domingo da Quaresma, do presente ciclo litúrgico, que nos coloca perante a mulher adúltera e o Jesus misericordioso. Já por si seria elucidativa esta formulação, ainda que eu não seja favorável a qualquer forma de impunidade, quando ela, naturalmente, se justifica. Todavia, a justiça de Deus não deixa de ser diferente da dos homens – aquela visa eficazmente a verdadeira e total reabilitação do ser humano, sem se deter nos meandros dos seus limites ou das suas justificações.
Mas o episódio veio-me à mente não por causa destes primeiros enunciados; antes pelo facto de a apresentação da mulher a Jesus nada ter a ver com o seu processo condenatório (os fariseus e os escribas conheciam bem a lei mosaica!), mas sim devido à pretensão de apanharem Jesus em falso e terem forma de O acusar. Na verdade, aqueles fariseus e escribas, conhecedores da lei, usaram a mulher como instrumento dos seus intentos. Em certo sentido, «prostituíram-na» de novo, para alcançarem agora os seus objectivos. De pouco importava a mulher e a sua situação; importante, repitamo-lo – como claramente refere São João – era apanhar Jesus em falso.
Hoje, os novos «fariseus» e «escribas», do nosso tempo (que nem sequer se podem apelidar de justos, à imagem daqueles de outras eras!), também não parecem querer preocupar-se com as crianças vítimas de abusos, nem verdadeiramente com as suas histórias. Têm em vista ferir de morte o coração da Igreja, desacreditando-a e retirando força à sua mensagem perene. As crianças – adultos, muitas delas, hoje – são como peões nas suas mãos em vista de objectivos bem menos claros; quantas vezes encapotados, sob o manto de uma certa moralidade ou justiça para a qual se sentem mandatados. Também aqui as crianças e os seus dramas parecem contar muito pouco à imagem da mulher do Evangelho! São instrumentos de uma ideologia que pretende varrer tudo o que se oponha a estes novos «fariseus». Só à luz desta atitude se entendem os desenvolvimentos dos factos relativos à pedofilia: se eles foram reais e, portanto, notícia, no momento oportuno – com a Igreja a tomar o pulso à sua realidade e a tomar as medidas necessárias –; já não se entende a obsessiva permanência noticiosa dos factos e as novas pretensões agora aduzidas. Ou seja, após reacção vigorosa do Papa, é a sua cabeça que agora se pede. Um jornal diário, neste dia em que escrevo este apontamento, chegou a reproduzir a indicação de alguém que afirmava que o Papa devia demitir-se devido a tais escândalos! Afinal, qual é a pretensão? Ela é evidente: chegar ao Papa, desacreditá-lo no seu ministério petrino, desapossá-lo da sua legitimidade moral, mediante a qual continua a exercer a missão eclesial que lhe foi confiada! Aliás, esta mesma orientação foi seguida claramente por um alinhamento noticioso, de um dos nossos canais televisivos, concretamente a propósito da homilia do Papa, na Missa de Domingo de Ramos, cuja colagem da problemática da pedofilia às suas palavras em nada – absolutamente – tinha a ver com o que naquele contexto era meditado. Ou seja, se o Papa não fala, fazemo-lo falar, seja qual for o recurso a interpretações verdadeiramente arbitrárias de que se faça expediente. A intenção era clara: introduzir no mesmo filtro tudo quanto o Papa pudesse dizer, fosse ou não relacionado com o assunto que os jornalistas gostariam de ver abordado. Daí que se torne claro que estamos perante novos «farisaísmos», cuja atitude em nada se distancia daqueles da primeira hora. A Igreja não é uma estrutura intocável, pois ela própria se reconhece «santa e pecadora» (LG. 8); mas é inexpugnável, porquanto é mistério de fé e tem na sua base o dom da própria trindade! (cf. LG. 2 – 4).
Mas, não nos deixemos iludir: entre nós o ataque vai continuar e, porventura, até intensificar-se, pois estamos em pleno período Pascal e o Papa visitar-nos-á muito em breve.
Pena é que não aproveitemos a mensagem profundamente humanizadora – cuja necessidade se faz sentir de forma tão profunda na sociedade portuguesa dos nossos dias – de que o Papa, de forma tão lúcida e veemente, se torna verdadeiro arauto!

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho

segunda-feira, 29 de março de 2010

«Filosofo agnóstico e senador defende o Papa‏»

Hoje chegou-me, via email, esta carta de Marcello Pera, Filósofo agnóstico, que dá que pensar. Pesem embora a multiplicidade de argumentos que possamos aduzir, esta Carta deve ser lida com inteligência. Tanto mais que qualquer mensagem do Papa, mesmo a homilia de Domingo de Ramos, não deixa de ser inserida num «pacote único» do qual a comunicação social não quer, deliberadamente, descolar-se (mesmo que distorcendo a mensagem ou fazendo perder o seu nexo!)
Mas leiam.



«Caro Director,
A questão dos sacerdotes pedófilos ou homossexuais, que rebentou recentemente na Alemanha, tem como alvo o Papa. E, dadas as enormidades temerárias da imprensa, cometeria um grave erro quem pensasse que o golpe não acertou no alvo – e um erro ainda mais grave quem pensasse que a questão morreria depressa, como morreram tantas questões parecidas. Não é isso que se passa. Está em curso uma guerra.
Não propriamente contra a pessoa do Papa porque, neste terreno, tal guerra é impossível: Bento XVI tornou-se inexpugnável pela sua imagem, pela sua serenidade, pela sua limpidez, firmeza e doutrina; só aquele sorriso manso basta para desbaratar um exército de adversários. Não, a guerra é entre o laicismo e o cristianismo.
Os laicistas sabem perfeitamente que, se aquela batina branca fosse tocada, sequer, por uma pontinha de lama, toda a Igreja ficaria suja, e se a Igreja ficasse suja, suja ficaria igualmente a religião cristã. Foi por isso que os laicistas acompanharam esta campanha com palavras de ordem do tipo: «Quem voltará a mandar os filhos à igreja?», ou «Quem voltará a meter os filhos numa escola católica?», ou ainda: «Quem internará os filhos num hospital ou numa clínica católica?» Há uns dias, uma laicista deixou escapar uma observação reveladora: «A relevância das revelações dos abusos sexuais de crianças por parte de sacerdotes mina a própria legitimação da Igreja Católica como garante da educação dos mais novos.»
Pouco importa que semelhante sentença seja desprovida de qualquer base de prova, porque a mesma aparece cuidadosamente latente: «A relevância das revelações»; quantos são os sacerdotes pedófilos? 1%? 10%? Todos? Pouco importa também que a sentença seja completamente ilógica; bastaria substituir «sacerdotes» por «professores», ou por «políticos», ou por «jornalistas» para se «minar a legitimação» da escola pública, do parlamento, ou da imprensa. Aquilo que importa é a insinuação, mesmo que feita à custa de um argumento grosseiro: os sacerdotes são pedófilos, portanto a Igreja não tem autoridade moral, portanto a educação católica é perigosa, portanto o cristianismo é um engano e um perigo. Esta guerra do laicismo contra o cristianismo é uma guerra campal; é preciso recuar ao nazismo e ao comunismo para se encontrar outra igual. Mudam os meios, mas o fim é o mesmo: hoje, como ontem, aquilo que se pretende é a destruição da religião. Ora, a Europa pagou esta fúria destrutiva ao preço da própria liberdade.
É incrível que sobretudo a Alemanha, que bate continuamente no peito pela memória desse preço que infligiu a toda a Europa, se esqueça dele, hoje que é democrática, recusando-se a compreender que, destruído o cristianismo, é a própria democracia que se perde. No passado, a destruição da religião comportou a destruição da razão; hoje, não conduz ao triunfo da razão laica, mas a uma segunda barbárie.
No plano ético, é a barbárie de quem mata um feto por ser prejudicial à «saúde psíquica» da mãe. De quem diz que um embrião é uma «bola de células», boa para fazer experiências. De quem mata um velho porque este já não tem família que cuide dele. De quem apressa o fim de um filho, porque este deixou de estar consciente e tem uma doença incurável. De quem pensa que progenitor «A» e progenitor «B» é o mesmo que «pai» e «mãe». De quem julga que a fé é como o cóccix, um órgão que deixou de participar na evolução, porque o homem deixou de precisar de cauda. E por aí fora. Ou então, e considerando agora o lado político da guerra do laicismo contra o cristianismo, a barbárie será a destruição da Europa. Porque, eliminado o cristianismo, restará o multiculturalismo, de acordo com o qual todos os grupos têm direito à sua cultura. O relativismo, que pensa que todas as culturas são igualmente boas. O pacifismo, que nega a existência do mal.
Mas esta guerra contra o cristianismo seria menos perigosa se os cristãos a compreendessem; pelo contrário, muitos deles não percebem o que se está a passar. São os teólogos que se sentem frustrados com a supremacia intelectual de Bento XVI. Os bispos indecisos, que consideram que o compromisso com a modernidade é a melhor maneira de actualizar a mensagem cristã.
Os cardeais em crise de fé, que começam a insinuar que o celibato dos sacerdotes não é um dogma, e que talvez fosse melhor repensar essa questão. Os intelectuais católicos que acham que a Igreja tem um problema com o feminismo e que o cristianismo tem um diferendo por resolver com a sexualidade. As conferências episcopais que se enganam na ordem do dia e, enquanto auguram uma política de fronteiras abertas a todos, não têm a coragem de denunciar as agressões de que os cristãos são alvo, bem como a humilhação que são obrigados a suportar por serem colocados, todos sem descriminação, no banco dos réus. Ou ainda os chanceleres vindos do Leste, que exibem um ministro dos negócios estrangeiros homossexual, ao mesmo tempo que atacam o Papa com argumentos éticos; e os nascidos no Ocidente, que acham que este deve ser laico, que o mesmo é dizer anti-cristão. A guerra dos laicistas vai continuar, quanto mais não seja porque um Papa como Bento XVI sorri, mas não recua um milímetro.
Mas aqueles que compreendem esta intransigência papal têm de agarrar na situação com as duas mãos, não ficando de braços cruzados à espera do próximo golpe. Quem se limita a solidarizar-se com ele, ou entrou no horto das oliveiras de noite e às escondidas, ou então não percebeu o que está ali a fazer».

Marcello Pera

Filósofo, agnóstico e senador.
Publicado no Corriere della Sera 17.III.10

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Que destino para esta Nação?

Que destino para esta Nação? Existem duas ou três concepções básicas, da micro-administração, que não podem deixar de se alargar à macro-administração: a despesa nunca pode ser maior que a receita; se a despesa é maior que a receita, obrigatóriamente é necessário fazer ajustes, vulgarmente chamados cortes de despesa, para que se acertem as contas; a única forma de produzir receita é aumentar a produção! Isto que é básico para cada um de nós, não o será para quem administra a nível da macro-estrutura? Bem sei que as questões não são assim tão simples, mas as regras são claras. Senão hipotecamos um país chamado Portugal! Será que a história não nos ensinou nada, quando deixámos de aproveitar o muito que explorámos na América e na Ásia, sem termos sido capazes de transformar esses produtos em mais valias para o país - então, o Reino? Somos um povo empreendedor, mas parece faltar-nos alguma orientação!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

2010 – O início de uma década?

Com muita frequência, neste início de ano, tenho lido alguns artigos em que se afirma que estamos no início de uma nova década. Ora, nada mais falso. Todos nós sabemos que uma década inicia a 1 e termina a 10. Assim sendo, estamos – isso sim – no final da primeira década do século XXI. Tal confusão faz-nos regressar à origem do novo milénio – para uns ele iniciou-se em 2000, para outros em 2001. Para mim, o novo milénio apenas se iniciou em 2001 e uma nova década apenas se inicia em 2011, terminando esta em 2020. Ficou-me sempre na memória, desde o ensino Unificado (hoje básico) a divisão que éramos obrigados a fazer nas aulas de História: sempre que existisse um número positivo á direita estávamos no século seguinte; se o número fosse negativo – o zero, por exemplo – estávamos no mesmo século. Assim, 1900 é final do século XIX e não início do século XX. 1901 - esse sim - é início do século XX. 1700 é final do século XVII e 1701 início do século XVIII. Não entendo porquê esta confusão com o milénio e uma nova forma de contagem do tempo. Se alguém tiver uma indicação contrária a esta que possa justificar, agradeço o esclarecimento.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A questão de John Wycliffe (1320 – 1384)

Porque em artigo anterior referi a complexidade de elementos que se cruzam na interpretação de factos históricos, entendi exemplificar, agora, esta realidade com um elemento concreto da História da Igreja e da nossa História Universal. De largo alcance, de resto. Trata-se da história de John Wycliffe, sacerdote inglês que viveu, como indicado, entre os anos 1320 e 1384. Sendo natural de uma família tradicional do Yorkshire, na Inglaterra, foi enviado para a Universidade de Oxford, onde cursou Teologia, Filosofia e Cânones. Desta vasta formação salienta-se o seu doutoramento em Teologia, que conduzirá John Wycliffe ao professorado no Balliol College, na mesma cidade de Oxford.
No aprofundamento das suas teses, Wycliffe defende a purificação da Igreja de seu tempo, considerando que esta deveria regressar ao seu estado original, em conformidade com o Evangelho. Mas, desde logo, entenda-se que esta não será a única voz, ao longo da História da Igreja, que defende tal regresso às origens – defenderam posição semelhante muitos dos Humanistas, do período do Renascimento, e muitas outras figuras maiores da própria Igreja, como, por exemplo São Francisco de Assis e São Domingos, no período medieval; ou mesmo ainda, São Bernardo de Claraval, fundador da Ordem de Cister, para me referir ao mesmo período. E, no nosso tempo, sob a intuição do Papa João XXIII a Igreja realiza uma das maiores renovações, através do Concílio Ecuménico Vaticano II, por ele mesmo convocado. A diferença entre Wycliffe e estes outros reformadores – entre os muitos que poderíamos apontar – define-se a partir dos métodos e dos objectivos que se pretendem alcançar. E Wycliffe, segundo as suas intuições, visava retirar à Igreja elementos constitutivos que lhe são essenciais. Além do mais, permite que o seu pensamento perca a isenção quando se mistura com outros interesses de carácter político e económico que, definitivamente, o condicionam. Claro que – como os demais – Wycliffe é um «produto» do seu tempo. Mas vejamos: nas suas reformas, defende a sujeição do poder eclesiástico ao poder temporal, alicerçado no princípio ideológico (que marcou a idade média e a moderna) de que o poder régio provinha de Deus. Certo é que colocava a Igreja na esfera do poder temporal, num período em que os poderes se sobrepunham, ora favorecendo a perspectiva eclesial, ora a perspectiva secular. De resto, retirava à Igreja boa parte da sua identidade, tornando-a cativa do poder secular. Esta intuição de Wycliffe, que não surtiu efeito no seu tempo, veio a fundamentar a posição de Henrique VIII, quando, por razões meramente pessoais, que todos bem conhecemos, como era a questão do seu divórcio e recasamento, o levaram, sensivelmente dois séculos depois, a quebrar a união com Roma e a assumir-se como chefe da Igreja de Inglaterra, abrindo espaço à divisão Anglicana.
Mas, dado importante, é que durante o período de produção das teses de Wycliffe estamos em plena Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), que opõe precisamente, entre outros, a Inglaterra à França. Ora, nada servia melhor a causa Inglesa, e as suas afirmações nacionalistas, senão a separação do papado, porquanto este, precisamente entre 1309 e 1377, se encontrava em Avinhão, território francês. Daí, inicialmente, a adesão clara dos poderes instituídos e do próprio povo à causa de Wycliffe. Por outro lado, como haveria de acontecer com Lutero, dois séculos depois, os grandes senhores pretendiam libertar-se dos tributos ao Papa; acrescendo ainda, agora, o desejo de se apossarem dos bens da Igreja, que passavam para a sua tutela.
Importa ainda considerar que Wycliffe, particularmente na fase final da sua vida, e já depois de admoestado pela competente autoridade eclesiástica, procura anular um elemento fundamental da eclesiologia, como era, e continua a ser, a sucessão apostólica, anulando o papado e a própria hierarquia da Igreja. Mesmo em relação aos padres, retirava-lhes a natureza sacramental da ordenação, o que inviabilizava o exercício específico do seu ministério. De igual modo, negava a transubstanciação no mistério Eucarístico. E quanto à divulgação da Bíblia, um outro problema igualmente se levantava – o da interpretação do texto sagrado. Pela sua natureza, o texto bíblico necessitava de ser interpretado para não se desvirtuar, como, de resto, veio a acontecer depois da Reforma Protestante, iniciada com Lutero. A livre interpretação, sem fundamentação, abria espaço a uma profunda ruptura da fé e da unidade doutrinal. Certo é que a maior parte dos Ingleses, com a tradução para a sua língua mãe, não tinha acesso ao texto – muito caro, porque manuscrito, e porque grassava ainda um profundo analfabetismo entre a população. Mas abria-se espaço para uma ruptura na unidade da fé, que assenta no dado revelado. Realidade que, uma vez mais, pudemos constatar dois séculos depois com Lutero, sobretudo quando a Bíblia passa a ser impressa. O problema não é da leitura (ainda que a Igreja a reservasse), era sim o da interpretação. E a verdade é que a livre interpretação, sem aqui a valorar, criou uma imensa diversidade de Igrejas que se extremam até ao limite dos grupos sectários. Portanto, unida à questão política estava uma sensível questão religiosa.
Ora, neste contexto, não foi apenas a Igreja que reagiu; o próprio poder régio assume acção determinante na inviabilização da difusão das ideias de Wycliffe, quando, em meados de 1381, o rei Ricardo II, na sequência de um movimento social, atribuído aos discípulos de Wycliffe, conhecidos como «lolardos», pede à Universidade de Oxford que expulse este professor e impede a difusão das suas teses em sermões ou demais formas de ensino, sob pena de prisão para quem infringisse tal determinação.
Wycliffe viria a morrer na sequência de uma apoplexia, sofrida a 28 de Dezembro de 1384. Só posteriormente o Concilio de Constança (que decorreu entre 1414 e 1418) declarou as suas teses heréticas, particularmente quando, na esteira de tal mestre, Jan Huss e Jerónimo de Praga, seus discípulos, intentavam nova reforma que punha em causa a unidade da Igreja.
É certo que os seus escritos foram queimados, bem como os seus restos mortais. Mas tão pouco nos devemos admirar de tal processo, no período em questão, porquanto o fogo assumia um simbolismo purificador. Tal aconteceu, igualmente, em toda a época moderna, nos simples movimentos sociais, de carácter civil – na nossa linguagem hodierna – em que tudo o que se considerava iníquo era destruído pelo fogo, com este mesmo simbolismo de purificação.
A concluir, podemos sintetizar com a afirmação clara de que o processo de Wycliffe é transversal à realidade do seu tempo – política e religiosa. E não se propagou devido à oposição de todos os poderes instituídos. O mesmo não aconteceu com Lutero, que beneficiou dos interesses económicos e políticos de uma nova conjuntura, própria da época em que viveu e deu forma ao seu pensamento. Todavia, Wycliffe foi o primeiro teorizador da reforma que, depois, com Lutero havia de vingar.
Quanto à Igreja, por muito que nos custe aceitá-lo hoje, segundo a nossa mentalidade, necessariamente diversa da daquele tempo histórico, tomou as medidas necessárias para que a sua identidade e constituição se não desvirtuassem. O processo de Wycliffe não é, pois, um processo simples, mas de «luta» por uma identidade que até hoje se não perdeu! E mesmo se as divisões da Igreja acabaram por se consumar – ferida maior na sua História – tendem agora a dissipar-se com novas formas de aproximação, que só o futuro poderá erradicar de vez, num processo de Ecumenismo que não cessa de produzir os seus belos frutos! O último dos quais é a aproximação Anglicana, numa abertura bela à comunhão e unidade de uma única Igreja, segundo a vontade do Seu fundador e que nos cabe a todos restabelecer!

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho
NOTA: Texto publicado no Jornal da Mealhada