terça-feira, 26 de janeiro de 2010

2010 – O início de uma década?

Com muita frequência, neste início de ano, tenho lido alguns artigos em que se afirma que estamos no início de uma nova década. Ora, nada mais falso. Todos nós sabemos que uma década inicia a 1 e termina a 10. Assim sendo, estamos – isso sim – no final da primeira década do século XXI. Tal confusão faz-nos regressar à origem do novo milénio – para uns ele iniciou-se em 2000, para outros em 2001. Para mim, o novo milénio apenas se iniciou em 2001 e uma nova década apenas se inicia em 2011, terminando esta em 2020. Ficou-me sempre na memória, desde o ensino Unificado (hoje básico) a divisão que éramos obrigados a fazer nas aulas de História: sempre que existisse um número positivo á direita estávamos no século seguinte; se o número fosse negativo – o zero, por exemplo – estávamos no mesmo século. Assim, 1900 é final do século XIX e não início do século XX. 1901 - esse sim - é início do século XX. 1700 é final do século XVII e 1701 início do século XVIII. Não entendo porquê esta confusão com o milénio e uma nova forma de contagem do tempo. Se alguém tiver uma indicação contrária a esta que possa justificar, agradeço o esclarecimento.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A questão de John Wycliffe (1320 – 1384)

Porque em artigo anterior referi a complexidade de elementos que se cruzam na interpretação de factos históricos, entendi exemplificar, agora, esta realidade com um elemento concreto da História da Igreja e da nossa História Universal. De largo alcance, de resto. Trata-se da história de John Wycliffe, sacerdote inglês que viveu, como indicado, entre os anos 1320 e 1384. Sendo natural de uma família tradicional do Yorkshire, na Inglaterra, foi enviado para a Universidade de Oxford, onde cursou Teologia, Filosofia e Cânones. Desta vasta formação salienta-se o seu doutoramento em Teologia, que conduzirá John Wycliffe ao professorado no Balliol College, na mesma cidade de Oxford.
No aprofundamento das suas teses, Wycliffe defende a purificação da Igreja de seu tempo, considerando que esta deveria regressar ao seu estado original, em conformidade com o Evangelho. Mas, desde logo, entenda-se que esta não será a única voz, ao longo da História da Igreja, que defende tal regresso às origens – defenderam posição semelhante muitos dos Humanistas, do período do Renascimento, e muitas outras figuras maiores da própria Igreja, como, por exemplo São Francisco de Assis e São Domingos, no período medieval; ou mesmo ainda, São Bernardo de Claraval, fundador da Ordem de Cister, para me referir ao mesmo período. E, no nosso tempo, sob a intuição do Papa João XXIII a Igreja realiza uma das maiores renovações, através do Concílio Ecuménico Vaticano II, por ele mesmo convocado. A diferença entre Wycliffe e estes outros reformadores – entre os muitos que poderíamos apontar – define-se a partir dos métodos e dos objectivos que se pretendem alcançar. E Wycliffe, segundo as suas intuições, visava retirar à Igreja elementos constitutivos que lhe são essenciais. Além do mais, permite que o seu pensamento perca a isenção quando se mistura com outros interesses de carácter político e económico que, definitivamente, o condicionam. Claro que – como os demais – Wycliffe é um «produto» do seu tempo. Mas vejamos: nas suas reformas, defende a sujeição do poder eclesiástico ao poder temporal, alicerçado no princípio ideológico (que marcou a idade média e a moderna) de que o poder régio provinha de Deus. Certo é que colocava a Igreja na esfera do poder temporal, num período em que os poderes se sobrepunham, ora favorecendo a perspectiva eclesial, ora a perspectiva secular. De resto, retirava à Igreja boa parte da sua identidade, tornando-a cativa do poder secular. Esta intuição de Wycliffe, que não surtiu efeito no seu tempo, veio a fundamentar a posição de Henrique VIII, quando, por razões meramente pessoais, que todos bem conhecemos, como era a questão do seu divórcio e recasamento, o levaram, sensivelmente dois séculos depois, a quebrar a união com Roma e a assumir-se como chefe da Igreja de Inglaterra, abrindo espaço à divisão Anglicana.
Mas, dado importante, é que durante o período de produção das teses de Wycliffe estamos em plena Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), que opõe precisamente, entre outros, a Inglaterra à França. Ora, nada servia melhor a causa Inglesa, e as suas afirmações nacionalistas, senão a separação do papado, porquanto este, precisamente entre 1309 e 1377, se encontrava em Avinhão, território francês. Daí, inicialmente, a adesão clara dos poderes instituídos e do próprio povo à causa de Wycliffe. Por outro lado, como haveria de acontecer com Lutero, dois séculos depois, os grandes senhores pretendiam libertar-se dos tributos ao Papa; acrescendo ainda, agora, o desejo de se apossarem dos bens da Igreja, que passavam para a sua tutela.
Importa ainda considerar que Wycliffe, particularmente na fase final da sua vida, e já depois de admoestado pela competente autoridade eclesiástica, procura anular um elemento fundamental da eclesiologia, como era, e continua a ser, a sucessão apostólica, anulando o papado e a própria hierarquia da Igreja. Mesmo em relação aos padres, retirava-lhes a natureza sacramental da ordenação, o que inviabilizava o exercício específico do seu ministério. De igual modo, negava a transubstanciação no mistério Eucarístico. E quanto à divulgação da Bíblia, um outro problema igualmente se levantava – o da interpretação do texto sagrado. Pela sua natureza, o texto bíblico necessitava de ser interpretado para não se desvirtuar, como, de resto, veio a acontecer depois da Reforma Protestante, iniciada com Lutero. A livre interpretação, sem fundamentação, abria espaço a uma profunda ruptura da fé e da unidade doutrinal. Certo é que a maior parte dos Ingleses, com a tradução para a sua língua mãe, não tinha acesso ao texto – muito caro, porque manuscrito, e porque grassava ainda um profundo analfabetismo entre a população. Mas abria-se espaço para uma ruptura na unidade da fé, que assenta no dado revelado. Realidade que, uma vez mais, pudemos constatar dois séculos depois com Lutero, sobretudo quando a Bíblia passa a ser impressa. O problema não é da leitura (ainda que a Igreja a reservasse), era sim o da interpretação. E a verdade é que a livre interpretação, sem aqui a valorar, criou uma imensa diversidade de Igrejas que se extremam até ao limite dos grupos sectários. Portanto, unida à questão política estava uma sensível questão religiosa.
Ora, neste contexto, não foi apenas a Igreja que reagiu; o próprio poder régio assume acção determinante na inviabilização da difusão das ideias de Wycliffe, quando, em meados de 1381, o rei Ricardo II, na sequência de um movimento social, atribuído aos discípulos de Wycliffe, conhecidos como «lolardos», pede à Universidade de Oxford que expulse este professor e impede a difusão das suas teses em sermões ou demais formas de ensino, sob pena de prisão para quem infringisse tal determinação.
Wycliffe viria a morrer na sequência de uma apoplexia, sofrida a 28 de Dezembro de 1384. Só posteriormente o Concilio de Constança (que decorreu entre 1414 e 1418) declarou as suas teses heréticas, particularmente quando, na esteira de tal mestre, Jan Huss e Jerónimo de Praga, seus discípulos, intentavam nova reforma que punha em causa a unidade da Igreja.
É certo que os seus escritos foram queimados, bem como os seus restos mortais. Mas tão pouco nos devemos admirar de tal processo, no período em questão, porquanto o fogo assumia um simbolismo purificador. Tal aconteceu, igualmente, em toda a época moderna, nos simples movimentos sociais, de carácter civil – na nossa linguagem hodierna – em que tudo o que se considerava iníquo era destruído pelo fogo, com este mesmo simbolismo de purificação.
A concluir, podemos sintetizar com a afirmação clara de que o processo de Wycliffe é transversal à realidade do seu tempo – política e religiosa. E não se propagou devido à oposição de todos os poderes instituídos. O mesmo não aconteceu com Lutero, que beneficiou dos interesses económicos e políticos de uma nova conjuntura, própria da época em que viveu e deu forma ao seu pensamento. Todavia, Wycliffe foi o primeiro teorizador da reforma que, depois, com Lutero havia de vingar.
Quanto à Igreja, por muito que nos custe aceitá-lo hoje, segundo a nossa mentalidade, necessariamente diversa da daquele tempo histórico, tomou as medidas necessárias para que a sua identidade e constituição se não desvirtuassem. O processo de Wycliffe não é, pois, um processo simples, mas de «luta» por uma identidade que até hoje se não perdeu! E mesmo se as divisões da Igreja acabaram por se consumar – ferida maior na sua História – tendem agora a dissipar-se com novas formas de aproximação, que só o futuro poderá erradicar de vez, num processo de Ecumenismo que não cessa de produzir os seus belos frutos! O último dos quais é a aproximação Anglicana, numa abertura bela à comunhão e unidade de uma única Igreja, segundo a vontade do Seu fundador e que nos cabe a todos restabelecer!

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho
NOTA: Texto publicado no Jornal da Mealhada