quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O Mistério de Natal!...

O Natal coloca-nos, uma vez mais – embora sempre de forma nova – diante do Mistério do Amor de Deus pelos homens. Na verdade, Deus não nos oferece a participação da Sua Divindade de forma distante, mas assume participar da nossa humanidade, tornando-se um de nós na pessoa do Filho, para nos elevar à condição divina. O nosso Deus é, efectivamente, um Deus profundamente comprometido connosco e com a nossa história. Salva-nos a partir do seio dos nossos condicionalismos – faz-se limite connosco para nos transfigurar consigo.
Assim sendo, duas atitudes se nos impõem, enquanto cristãos: a abertura à presença viva de Deus na nossa história pessoal e comunitária; e um compromisso novo com a humanidade redimida por Jesus Cristo feito carne. Em certo sentido, uma revalorização do Amor a Deus e do Amor ao próximo – coordenadas fundamentais do nosso agir de cristãos.
Num tempo em que o homem parece esquecer Deus, embora d’Ele careça como princípio e fim da sua existência, torna-se urgente regressar à comunhão de amor com Aquele que em Si nos oferece a vida plena. É uma necessidade do homem e não de Deus. Sob pena de o próprio homem se sentir solitário, desorientado, sem esperança e sem sentido para a vida que, por si, compreende já – quantas vezes – tanta desilusão, tanta solidão e tão profundos questionamentos. É o homem que necessita de contemplar o rosto de Deus para se redescobrir a si mesmo e as energias que dão futuro à sua vida, para redescobrir a esperança que plenifica a sua existência. Deus não força esta abertura; reclama-a apenas por amor ao próprio homem, para que este acolha o dom da vida que Aquele lhe oferece. Em tempo de Natal, o convite é a redescobrir o rosto de Deus e a deixarmo-nos contagiar pela vida que vem até nós! Isso pressupõe uma renovada abertura de coração para que o dom se nos comunique e em nós frutifique.
De igual forma, o tempo de Natal convida-nos a redescobrir o valor da vida humana, o seu sentido mais profundo – a sua dignidade – e o valor da comunhão entre os homens. Deus, em Jesus Cristo, compartilha connosco a existência humana para nos abrir à compreensão profunda do valor do outro, que jamais nos poderá ser indiferente. Assim sendo, as alegrias e esperanças, as inquietações e sucessos, as amarguras e as felicidades dos demais, numa vivência de verdadeira comunhão, hão-de ser também as nossas alegrias e as nossas esperanças, as nossas inquietações e os nossos sucessos. Mais ainda, o outro – como sugere Bento XVI, na sua Encíclica Sacramento de Caridade – há-de ser amado por nós com um coração semelhante ao de Deus. Ora, se Deus assume uma profunda compaixão pela nossa humanidade, como não havemos de assumir a mesma compaixão pelo destino dos nossos irmãos? Só assim o Evangelho se incarna na história humana e nos tornamos verdadeiros discípulos de Cristo. Não apenas na forma, mas no conteúdo! Jesus Cristo é dom e modelo. E é neste duplo sentido que havemos de O acolher.
Em tempo de Natal, propício para uma maior solidariedade com o outro, o cristão sente, mais vivamente, esta urgência da caridade! Que não se resume a este tempo, mas que se há-de prolongar por todos os tempos e contextos diversos.
Com este duplo desafio, que me imponho e vos proponho, quero desejar a todos um Santo Natal. Que signifique um verdadeiro nascimento de Cristo na vida e história de cada um e a redescoberta da humanidade nova que Ele mesmo – o Senhor feito Carne – inaugurou!

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Resposta a André Vaz!

Ao ler o artigo de André Vaz, que me é dirigido explicitamente, a propósito das minhas observações sobre a obra «Caim» de José Saramago, apraz-me referir o seguinte:

1. Se é certo que leio sempre os artigos de André Vaz com algum interesse, pela sua capacidade reflexiva e pelo belo uso da palavra, não posso deixar de dizer que efectivamente estamos em campos opostos (embora os opostos, para mim, sejam sempre de respeitar!) pelos pressupostos ideológicos (ou pelo menos de pensamento) que cada um de nós vive. Na verdade, eu sou cristão e, por consequência, partilho os princípios do Cristianismo, enquanto o André é niilista, partilhando os princípios de Friedrich Wilhelm Nietzsche (filósofo que defende um niilismo activo contra o chamado niilismo passivo, que ele próprio combateu). Ora, o niilismo (atitude filosófica que melhor define Nietzsche, particularmente na transmutação de todos os valores que compreendem a morte de Deus) consiste na «absolutização do nada», no extremo da negatividade, a que Nietzsche responde com a absolutização do eu, contrapondo a uma outra concepção niilista.
Ora, posta assim a questão, não estranhará o leitor a diversidade de argumentos.

2. Estranho, todavia, é que sem me conhecer pessoalmente, assuma em relação à minha pessoa laivos de «dogmatismo» quando me insere, sem mais, nesse conjunto de pessoas destituídas de conhecimento e de preocupações intelectuais. Meu caro André, antes de nascer – ou pelo menos no seu período de «cueiros» – já eu havia lido a Gaia Ciência e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, obras inicialmente publicadas, respectivamente, em 1881 e 1885. Além disso, a sua leitura inseria-se numa visão de conjunto da filosofia que define a formação intelectual de quem cursa Teologia. De resto, sem que as obras referidas fossem obrigatórias, entendi lê-las porque percursoras da filosofia que marca profundamente os meados do século XX e que conhecemos como «existencialismo». Sem ser propriamente existencialista, Nietzsche, na senda de Sören Kierkegaard – considerado como o verdadeiro percursor deste movimento filosófico – exprime a sua percepção angustiante da vida. Mesmo que inverta a sua afirmação sobre o sentido da vida humana. É curioso – e lamento que assim seja – que os «dogmatismos» ateus se tornem tão contundentes, senão mesmo agressivos, ainda que desconhecendo os alvos que visam. E nesta atitude ainda têm a veleidade de criticar a Igreja! Porque olham para o argueiro da vista do irmão e não para a trave que têm na sua? - parafraseando Jesus, no Evangelho! Mas bem… deixemo-nos destes meandros.
Quanto à minha formação, caro André – e perdoem-me os leitores a minha aparente imodéstia, que a não é – não devo nada à formação contínua que hoje é tão valorizada. Desde a minha ordenação sacerdotal, em 1991, só deixei um plano regular de estudos num período que vai de 1991 a 1995. Depois disso, voltei a cursar Teologia, Filosofia (que interrompi por estar a repetir conteúdos) e História, na qual estou agora envolvido, não me detendo simplesmente no primeiro grau de formação. Portanto, numa formação contínua, que conta já catorze anos, julgo ser evidente que privilegio o pensamento, a reflexão, a discussão e a compreensão da realidade, que me faz passar do âmbito da Teologia para outros diálogos e compreensões. Mas, repito, isto é só ilustrativo, sem querer usar qualquer curriculum para me credenciar ou justificar.

3. Mas, voltemos a Nietzsche, para que os leitores compreendam as nossas diferenças. Este filósofo, nascido a 15/10/1844, numa família de protestantes – o seu pai era pastor protestante, assim como o seu avô o tinha sido – faz toda a sua formação inicial no colégio protestante de Pforta, célebre pela tradição humanista e luterana. Nietzsche estava destinado a ser pastor como os seus antecessores. Descobrindo aí a cultura clássica que se une à sua perda da fé, este filósofo viria a fazer do pensamento helenista a fonte essencial da sua filosofia. Todavia, o pensamento de Nietzsche insere-se num período de oposição a um pensamento burguês que definia a realidade socioeconómica finissecular. E a sua luta contra o Cristianismo insere-se numa visão pietista e nominalista que de modo pouco critico recebe desse contexto político, social e cultural. Qualquer filósofo é fruto do seu tempo. De resto, algo de semelhante, embora de orientação diferente, havia acontecido com Marx. A verdade é que o pensamento de Nietzsche resulta também das suas experiências traumáticas, particularmente quando, em 1879, teve de abandonar a docência na Universidade de Basileia por ter contraído doença bastante grave. Doença que sempre o acompanhará e o levará a morrer na loucura em Weimar, a 25/08/1900. O período de doença do filósofo coincide com o grande período de produção literária. De modo que muitos autores consideram que as obras de Nietzsche são feitas «do seu próprio drama». E a morte de Deus – reacção a uma concepção negativa e triste da vida, em sintonia com a moral luterana – leva-o a buscar a divindade em si próprio, numa afirmação exacerbada do «eu». Como refere uma autora – Lou Salomé – «Nietzsche toda a vida se esforçou por descobrir através das diferentes figuras de divinização de si mesmo um substituto para o Deus morto». Ou seja, a eliminação do Cristianismo é mais a substituição de uma divindade por outra, mais do que a tentativa de eliminar a ideia de divino. Certo é que Nietzsche intenta eliminar a herança cristã, mas sendo perfeitamente incapaz de criar novos valores.

4. No que se refere a Saramago – pois foi a partir da sua obra «Caim» que se iniciou esta contraposição de argumentos (pretendo que o seja, mais que qualquer forma de ataque!) – mantenho exactamente o que escrevi. Saramago, como romancista, é livre de escrever o que quiser e sobre o que quiser. Mas, como escreve para leitores, tem de ser exigente no uso das fontes que lhe servem de fundamento. Ora, para uma autêntica compreensão do texto bíblico é essencial que se atenha a conceitos básicos de hermenêutica (já não digo de exegese!). Assim, do ponto de vista hermenêutico, é impossível compreender a Escritura sem a enquadrar nos seus géneros literários, na realidade cultural do povo de Israel (bem como na dos povos da antiguidade), na sua geografia e na sua história. Partir do texto sem estas coordenadas é dizer barbaridades! Imagine-se Saramago usar como fundamento da sua escrita os Lusíadas, mas desvirtuando o seu sentido de base! Que credibilidade nos mereceria? É que, como afirmei, não se trata só da Sagrada Escritura, mas também da fundamentação histórica, mitológica, ou de qualquer outra. Já agora, esta percepção não é exclusivamente minha, nem dos «homens da Igreja»: vejam-se, a este propósito, alguns comentários de diversos intelectuais ao Jornal de Letras, nas novas redes socais disponíveis na Internet.

5. Quanto às acusações que dirigia à Igreja, peço-lhe, caro André, em nome da inteligência que não enverede pelas atitudes simplesmente anacrónicas com que muitos, hoje, olham o passado. Ler o passado – sejam as instituições, as concepções políticas, religiosas, culturais – sem um verdadeiro enquadramento no seu contexto é desvirtuar os factos e usá-los simplesmente a nosso favor! A Igreja tão pouco era uma instituição separada do poder político, como depois – e bem – se estabeleceu a partir dos inícios da época contemporânea. As instituições, como a inquisição, serviram tanto a Igreja como o rei e o poder político instituído. Sinal disso é que a última vítima da Inquisição em Portugal – a título de exemplo – foi o Padre Gabriel Malagrida, Jesuíta, mandado executar pelo Marquês de Pombal. Os processos de Wycliffe, de Giordano Bruno ou de Galileu Galilei (que foi capaz de entender o que significavam as suas afirmações para a época; um homem à frente do seu tempo, como bem reconheceu o Papa João Paulo II) ainda que objectivamente maus, só se entendem no quadro das suas mundividências. De outro modo, estamos a extrapolar acontecimentos do suporte objectivo que nos permite o seu necessário enquadramento. E, assim, os acontecimentos tornam-se mitos, no pior sentido do termo. Aliás, sobre as temáticas da Igreja e da sua acção, nos períodos medieval e moderno, talvez valha a pena serem retomadas, mas noutra exposição, pois que urge clarificar muitas realidades.

6. Porque já vai demasiado longa esta resposta, gostaria de terminar com algumas considerações finais. A ideia de que no seio da Igreja – pois não me critica apenas a mim, mas também os demais cristãos – não existe formação já teve o seu tempo. É certo que muito há a fazer; serei o primeiro a afirmá-lo! Mas dê graças a Deus (mesmo que isto seja um paradoxo para si!) pelas possibilidades que teve, tal como eu também tive, e seja compreensivo para com quem não teve as mesmas oportunidades. De resto, existe hoje muita gente ciosa de uma formação mais consistente, de que eu sou testemunha pessoal, mesmo que carecendo de formação de base. Além do mais, a vida cristã não se baseia num simples conhecimento intelectual (embora ele seja necessário), mas numa atitude existencial. Ou seja, a vida cristã não se baseia numa ideia, mas numa Pessoa – Jesus Cristo. E, neste sentido, permita-me que ao seu «modelo» eu contraponha o meu. É que o meu modelo, mais do que as ideias inconsequentes (ou de nefastas consequências), leva-me a agir, centrando-me num princípio vital de realização humana no seu todo – no amor, enquanto serviço! (E veja como Saramago não tinha razão!). Por incrível que pareça, a Igreja tem como centro da sua acção a linguagem da vida e não «linguagem da morte», como refere. Desde logo, porque é chamada a viver o amor (enquanto doação) que tudo recria; depois, porque no limite está sempre a vida como esperança. Ao contrário, o pensamento de Nietzsche apenas conduz à morte, ao sem sentido; e aqui, na vivência que nos é própria, à luta do mais forte sobre o mais fraco. Pese embora o valor do pensamento – de que eu não abdico – prefiro o meu Deus ao seu «deus». É que Ele não é só divino, mas é igualmente muito mais humano! Só por isso já valeria a pena professar a fé. Mas esta mesma fé perspectiva-nos para horizontes mais largos, face ao mistério da existência humana. E, já agora, se o mal existe, porque existe, é porque Deus sabe respeitar a liberdade individual de cada um. Deus não criou «marionetas» com quem possa divertir-se; criou, isso sim, homens capazes de dialogar com Ele, o que pressupõe uma verdadeira liberdade (possibilidade de opção, de livre arbítrio!) Além disso, este Deus ensina-me o valor da humildade, que se contrapõe à arrogância, o lugar do outro face ao meu eu; o valor da alteridade face ao egocentrismo. Também aqui (sem qualquer juízo das suas acções, que as não conheço, nem aqui são importantes!) divergimos – afinal – nos modelos!

PS. Com o mesmo recurso a post-scriptum, acrescentarei apenas que não me recuso responder a interpelações sempre que estas sejam feitas no claro respeito pelas pessoas e pelas instituições, sejam elas do meu agrado ou não. De outro modo estaremos a usar os meios de comunicação para uma atitude de incorrecção que desdiz de um fim construtivo que se pretende, para além de poderem expressar uma explicita falta de cidadania, que começa num autêntico respeito pela diferença.

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho


(Este artigo foi escrito na sequência de um outro, do autor referido, publicado no Jornal da Mealhada).