quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Mês das Almas


MÊS DAS ALMAS
 
   O mês de Novembro é conhecido, na tradição cristã, como o mês das almas. Precisamente porque se inicia este ciclo de trinta dias com a Solenidade de Todos os Santos e, muito particularmente, com a Comemoração de todos os Fiéis Defuntos. A que não é estranho, de igual modo, o final do ciclo litúrgico anual, com um particular enfoque na dimensão escatológica da vida – vida humana e de toda a criação. Assim, o convite litúrgico é o de olharmos para as realidades temporais, mas na consciência de que elas não são eternas e que a nossa meta se compreende na transcendência.

   A oração pelas almas – o mesmo é dizer, a oração pelos defuntos, na sua integridade e corporeidade, para ultrapassarmos os conceitos neoplatónicos de separação de corpo e alma – centra-nos particularmente na solicitude para com as almas do purgatório. Ora, falar precisamente de purgatório coloca-nos aparentemente numa posição de choque com a mentalidade hodierna, porquanto muitos consideram o termo purgatório ultrapassado; e poucos são os que acreditam no, então chamado, «fogo do purgatório». Entendamo-nos então: a palavra purgatório, provém do latim purgatoriu, significando purga ou purgativo, que, por sua vez, significa purificar, limpar. Ora, o purgatório não é mais do que um processo existencial de purificação para participarmos na santidade de Deus. Todos nós, homens, fruto da nossa condição frágil, cometemos pecados (as nossas múltiplas fragilidades), o que nos constitui como seres limitados. Por seu turno, só Deus é santo! A santidade é uma especificidade de Deus. Assim, o humano e o divino parecem ser realidades intocáveis, pela sua diferenciação. Que não o são, efetivamente, pois Deus, na Sua bondade, enviou o Seu Filho, que se fez homem – «em tudo igual a nós, exceto no pecado» (cf. Hb. 2, 17) - para nos elevar à condição divina. E Jesus, pela Sua morte e ressurreição – o seu Mistério Pascal -, tornou-se para nós o Cristo, elevando a nossa humanidade a esta condição divina. De tal condição participam todos os batizados, porquanto mediante este dom gratuito de Deus fomos tornados membros de Cristo, participando da Sua própria vida. Assim, o purgatório não é mais do que esta plena configuração com Cristo; dom, recebido no batismo, que nós manchámos ao longo da nossa história, necessitando agora de uma purificação plena. Por outro lado, a conceção literalista do purgatório como fogo provém das conceções teológicas tardo-medievais, que representavam deste modo o lugar de purificação, assumindo, desta forma, a simbologia bíblica. O purgatório não é um lugar, mas sim uma realidade existencial; além disso, não se trata de fogo, mas sim de um total envolvimento da graça divina que nos confronta com a nossa humanidade frágil. Daí que ao referimos a dor – sempre com as categorias humanas -, apenas podemos aludir à dor que advém da consciência da fragilidade humana diante da santidade de Deus. Assim, nós rezamos para que Deus purifique os que fazem esta experiência, numa dimensão meta-histórica, concedendo-lhes plenamente a Sua própria santidade. E se há fogo, há apenas um: o do amor de Deus pelos homens, que o levou a dar-nos o Seu próprio Filho e a conceder-nos a graça de sermos igualmente Seus filhos.

   Sabendo que nos referimos a realidades que nos transcendem, mas reveladas em Jesus Cristo, mesmo que o Evangelho nunca refira explicitamente o purgatório e Jesus, na sua pregação, nos aponte o fogo purificador apenas como imagem; a verdade é que, ainda antes da revelação cristã da vida eterna, todas as culturas referem processos de purificação, como meios de alcançar a eternidade. Apenas as culturas moderna e pós-moderna, com as suas raízes no racionalismo e empirismo racionalista e, ultimamente, fundamentada na enorme capacidade tecnológica, transferiram paulatinamente o conceito de eternidade da sua realidade transcendente para uma dimensão imanente. Isto é, rejeitando a transcendência, procura-se na realidade material e histórica a plenitude da vida – a eternidade. Não obstante este desenvolvimento tecnológico, o envelhecimento e a falência histórica da vida serão sempre uma realidade, segundo os especialistas. Pelo que este ciclo mensal e as suas características, mesmo que esbatidas pela cultura atual e até pela vida eclesial, é uma oportunidade de olharmos para o sentido da vida e para a sua meta plena. A vida não se perpetua definitivamente na história; então qual o seu sentido? Se, para alguns, ela termina com o fim da história pessoal, o que significaria sempre a máxima frustração humana; para outros ela compreende-se à luz de uma eternidade revelada. Todavia, este tempo, para todos, poderá ser uma oportunidade de questionamento interior, face às inquietações fundamentais que sempre persistiram em cada coração humano: para onde caminho eu? Afinal, qual o sentido e o fim último da minha vida?

Pampilhosa, 09 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(62ª Reflexão)