MÊS DAS
ALMAS
O mês de Novembro é
conhecido, na tradição cristã, como o mês das almas. Precisamente porque se
inicia este ciclo de trinta dias com a Solenidade de Todos os Santos e, muito
particularmente, com a Comemoração de todos os Fiéis Defuntos. A que não é
estranho, de igual modo, o final do ciclo litúrgico anual, com um particular enfoque
na dimensão escatológica da vida – vida humana e de toda a criação. Assim, o
convite litúrgico é o de olharmos para as realidades temporais, mas na consciência
de que elas não são eternas e que a nossa meta se compreende na transcendência.
A
oração pelas almas – o mesmo é dizer, a oração pelos defuntos, na sua
integridade e corporeidade, para ultrapassarmos os conceitos neoplatónicos de
separação de corpo e alma – centra-nos particularmente na solicitude para com
as almas do purgatório. Ora, falar precisamente de purgatório coloca-nos
aparentemente numa posição de choque com a mentalidade hodierna, porquanto
muitos consideram o termo purgatório
ultrapassado; e poucos são os que acreditam no, então chamado, «fogo do
purgatório». Entendamo-nos então: a palavra purgatório, provém do latim purgatoriu, significando purga ou
purgativo, que, por sua vez, significa purificar, limpar. Ora, o purgatório não
é mais do que um processo existencial de purificação para participarmos na
santidade de Deus. Todos nós, homens, fruto da nossa condição frágil, cometemos
pecados (as nossas múltiplas fragilidades), o que nos constitui como seres
limitados. Por seu turno, só Deus é santo! A santidade é uma especificidade de
Deus. Assim, o humano e o divino parecem ser realidades intocáveis, pela sua
diferenciação. Que não o são, efetivamente, pois Deus, na Sua bondade, enviou o
Seu Filho, que se fez homem – «em tudo igual a nós, exceto no pecado» (cf. Hb.
2, 17) - para nos elevar à condição divina. E Jesus, pela Sua morte e ressurreição
– o seu Mistério Pascal -, tornou-se para nós o Cristo, elevando a nossa
humanidade a esta condição divina. De tal condição participam todos os
batizados, porquanto mediante este dom gratuito de Deus fomos tornados membros
de Cristo, participando da Sua própria vida. Assim, o purgatório não é mais do
que esta plena configuração com Cristo; dom, recebido no batismo, que nós
manchámos ao longo da nossa história, necessitando agora de uma purificação
plena. Por outro lado, a conceção literalista do purgatório como fogo provém
das conceções teológicas tardo-medievais, que representavam deste modo o lugar
de purificação, assumindo, desta forma, a simbologia bíblica. O purgatório não
é um lugar, mas sim uma realidade existencial; além disso, não se trata de
fogo, mas sim de um total envolvimento da graça divina que nos confronta com a
nossa humanidade frágil. Daí que ao referimos a dor – sempre com as categorias
humanas -, apenas podemos aludir à dor que advém da consciência da fragilidade
humana diante da santidade de Deus. Assim, nós rezamos para que Deus purifique
os que fazem esta experiência, numa dimensão meta-histórica, concedendo-lhes
plenamente a Sua própria santidade. E se há fogo, há apenas um: o do amor de
Deus pelos homens, que o levou a dar-nos o Seu próprio Filho e a conceder-nos a
graça de sermos igualmente Seus filhos.
Sabendo que nos referimos a realidades que nos transcendem, mas
reveladas em Jesus Cristo, mesmo que o Evangelho nunca refira explicitamente o
purgatório e Jesus, na sua pregação, nos aponte o fogo purificador apenas como
imagem; a verdade é que, ainda antes da revelação cristã da vida eterna, todas
as culturas referem processos de purificação, como meios de alcançar a
eternidade. Apenas as culturas moderna e pós-moderna, com as suas raízes no
racionalismo e empirismo racionalista e, ultimamente, fundamentada na enorme
capacidade tecnológica, transferiram paulatinamente o conceito de eternidade da
sua realidade transcendente para uma dimensão imanente. Isto é, rejeitando a
transcendência, procura-se na realidade material e histórica a plenitude da
vida – a eternidade. Não obstante este desenvolvimento tecnológico, o
envelhecimento e a falência histórica da vida serão sempre uma realidade,
segundo os especialistas. Pelo que este ciclo mensal e as suas características,
mesmo que esbatidas pela cultura atual e até pela vida eclesial, é uma
oportunidade de olharmos para o sentido da vida e para a sua meta plena. A vida
não se perpetua definitivamente na história; então qual o seu sentido? Se, para
alguns, ela termina com o fim da história pessoal, o que significaria sempre a
máxima frustração humana; para outros ela compreende-se à luz de uma eternidade
revelada. Todavia, este tempo, para todos, poderá ser uma oportunidade de questionamento
interior, face às inquietações fundamentais que sempre persistiram em cada
coração humano: para onde caminho eu? Afinal, qual o sentido e o fim último da
minha vida?
Pampilhosa, 09 de Novembro de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(62ª Reflexão)