EUTANÁSIA
Foi já entregue, no
parlamento português, a primeira proposta de lei sobre a legalização da
eutanásia. Proposta esta que, em comum com outras já prometidas, deverá ser discutida
até ao final da legislatura. Mas esta é uma matéria particularmente importante
porque toca não apenas o sentido da liberdade humana, mas igualmente o direito
fundamental da vida – direito que se sobrepõe a qualquer outro, porquanto é um
direito fundamental sobre o qual se constroem todos os demais.
Eutanásia, que provém do grego euthanasía
- «morte doce e fácil» -, significa morte provocada, de acordo com a
doutrina que permite a antecipação da morte de doentes incuráveis, para lhes
poupar os sofrimentos da agonia.[1]
Como
em tantas outras matérias fraturantes, porque tocam o cerne da dignidade e da
liberdade humana, também aqui se contrapõem duas posições: uma a favor da
legalização da eutanásia e outra a favor da não-aceitação de tal prática. Por
certo, com o perigo de caírem em visões fundamentalistas, ou dogmáticas. Julgo
que nesta, como em tantas outras matérias tão sensíveis, é necessário
dialogarmos, contrapondo, sem escrúpulos, os pontos de vista antagónicos
partilhados pelos defensores do sim e do não, de modo a que haja um esclarecimento
profundo sobre a natureza do que está em discussão.
Neste sentido, tenho encontrado fundamentações diversas, mas que, sem
pretensões da minha parte, não chegam a tocar os alicerces de tais posições. É
que nesta discussão encontramos, antes de mais, dois paradigmas antropológicos
completamente distintos: o primeiro, que luta pelo sim à eutanásia, concebe uma
liberdade absoluta do homem, considerado senhor absoluto de si,
fundamentando-se numa visão racionalista que coloca o homem, exclusivamente, no
centro de todas as considerações, como «regra suprema» (cf. GS. 12); por seu
turno, um segundo paradigma concebe o homem como ser criado à imagem e
semelhança de Deus, de modo que a liberdade humana será sempre a busca do bem
maior, da autêntica realização humana, e não um simples direito a dispor de si
mesmo. Daí que, segundo esta conceção antropológica, se afirme a necessidade de
respeitar a vida em todas as circunstâncias. Nesta conceção, ainda, a vida é um
dom permanentemente acolhido, que não nos encerra apenas em nós, mas no abre à
transcendência. Dom que exige capacidade de aceitação nas múltiplas condições
da existência humana. Nesta perspetiva, o homem não é senhor absoluto de si,
mas somente Deus, que o criou.
Ora,
estes dois modelos devem saber dialogar, sem preconceitos, procurando sempre o
bem maior, assumindo claramente as suas diferenças.
Da
parte dos crentes, inclusive, não há que recear acusações de obscurantismo,
quando uma visão antropológica não é menos válida que outra. O essencial é
sempre a defesa da dignidade da vida humana.
Mas,
para além desta visão diferenciada do fundamento da vida e do exercício da
liberdade, há ainda que recordar que todos somos unânimes na defesa dos
direitos humanos, onde se inscreve, em primeiro lugar, precisamente o direito à
vida. Por outro lado, há uma consciência clara de que ninguém pede para morrer.
Pede-se, isso sim, que se alivie o sofrimento. Qualquer pedido de eutanásia é
mais que um pedido de morte: é um autêntico grito que suplica a superação do
sofrimento. Então como responder? Nestas circunstâncias não me parece
despicienda a introdução de outra temática: a do alívio do sofrimento,
concretamente com os denominados cuidados paliativos. E, assim, mais do que
legalizar a morte, investe-se na vida, ainda que limitada.
A
eutanásia constitui-se também como uma «caixa de pandora»: legitimada, não
sabemos até onde se poderá estender a sua ação. Hoje, face a situações de
pessoas dependentes, inconscientes ou em estado vegetativo, há quem defenda uma
eutanásia presumida, em que terceiros decidem sobre a vida de alguém. Abre-se
uma porta para uma estrada cujos horizontes se desconhecem.
Sem
querer impor nada a ninguém, defendo o meu direito de afirmar que a vida é um
dom; uma dádiva que deve ser vivida em qualquer circunstância, pois
circunstância alguma lhe rouba a sua dignidade. Pode roubar-lhe a autonomia,
mas nunca a dignidade. A vida é um valor supremo, que nada, nem ninguém, pode
limitar.
Pampilhosa, 19 de Abril de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(84ª Reflexão)
[1]
Cf. Voc. Eutanásia in Dicionário de
Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1994, pp. 783 – 784.