sábado, 4 de agosto de 2018


EUTANÁSIA

   Foi já entregue, no parlamento português, a primeira proposta de lei sobre a legalização da eutanásia. Proposta esta que, em comum com outras já prometidas, deverá ser discutida até ao final da legislatura. Mas esta é uma matéria particularmente importante porque toca não apenas o sentido da liberdade humana, mas igualmente o direito fundamental da vida – direito que se sobrepõe a qualquer outro, porquanto é um direito fundamental sobre o qual se constroem todos os demais.

   Eutanásia, que provém do grego euthanasía - «morte doce e fácil» -, significa morte provocada, de acordo com a doutrina que permite a antecipação da morte de doentes incuráveis, para lhes poupar os sofrimentos da agonia.[1]

   Como em tantas outras matérias fraturantes, porque tocam o cerne da dignidade e da liberdade humana, também aqui se contrapõem duas posições: uma a favor da legalização da eutanásia e outra a favor da não-aceitação de tal prática. Por certo, com o perigo de caírem em visões fundamentalistas, ou dogmáticas. Julgo que nesta, como em tantas outras matérias tão sensíveis, é necessário dialogarmos, contrapondo, sem escrúpulos, os pontos de vista antagónicos partilhados pelos defensores do sim e do não, de modo a que haja um esclarecimento profundo sobre a natureza do que está em discussão.

   Neste sentido, tenho encontrado fundamentações diversas, mas que, sem pretensões da minha parte, não chegam a tocar os alicerces de tais posições. É que nesta discussão encontramos, antes de mais, dois paradigmas antropológicos completamente distintos: o primeiro, que luta pelo sim à eutanásia, concebe uma liberdade absoluta do homem, considerado senhor absoluto de si, fundamentando-se numa visão racionalista que coloca o homem, exclusivamente, no centro de todas as considerações, como «regra suprema» (cf. GS. 12); por seu turno, um segundo paradigma concebe o homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus, de modo que a liberdade humana será sempre a busca do bem maior, da autêntica realização humana, e não um simples direito a dispor de si mesmo. Daí que, segundo esta conceção antropológica, se afirme a necessidade de respeitar a vida em todas as circunstâncias. Nesta conceção, ainda, a vida é um dom permanentemente acolhido, que não nos encerra apenas em nós, mas no abre à transcendência. Dom que exige capacidade de aceitação nas múltiplas condições da existência humana. Nesta perspetiva, o homem não é senhor absoluto de si, mas somente Deus, que o criou.

   Ora, estes dois modelos devem saber dialogar, sem preconceitos, procurando sempre o bem maior, assumindo claramente as suas diferenças.

   Da parte dos crentes, inclusive, não há que recear acusações de obscurantismo, quando uma visão antropológica não é menos válida que outra. O essencial é sempre a defesa da dignidade da vida humana.

   Mas, para além desta visão diferenciada do fundamento da vida e do exercício da liberdade, há ainda que recordar que todos somos unânimes na defesa dos direitos humanos, onde se inscreve, em primeiro lugar, precisamente o direito à vida. Por outro lado, há uma consciência clara de que ninguém pede para morrer. Pede-se, isso sim, que se alivie o sofrimento. Qualquer pedido de eutanásia é mais que um pedido de morte: é um autêntico grito que suplica a superação do sofrimento. Então como responder? Nestas circunstâncias não me parece despicienda a introdução de outra temática: a do alívio do sofrimento, concretamente com os denominados cuidados paliativos. E, assim, mais do que legalizar a morte, investe-se na vida, ainda que limitada.

   A eutanásia constitui-se também como uma «caixa de pandora»: legitimada, não sabemos até onde se poderá estender a sua ação. Hoje, face a situações de pessoas dependentes, inconscientes ou em estado vegetativo, há quem defenda uma eutanásia presumida, em que terceiros decidem sobre a vida de alguém. Abre-se uma porta para uma estrada cujos horizontes se desconhecem.

   Sem querer impor nada a ninguém, defendo o meu direito de afirmar que a vida é um dom; uma dádiva que deve ser vivida em qualquer circunstância, pois circunstância alguma lhe rouba a sua dignidade. Pode roubar-lhe a autonomia, mas nunca a dignidade. A vida é um valor supremo, que nada, nem ninguém, pode limitar.

Pampilhosa, 19 de Abril de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(84ª Reflexão)



[1] Cf. Voc. Eutanásia in Dicionário de Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1994, pp. 783 – 784.