sábado, 4 de agosto de 2018


VISITA PASCAL
 
   A Visita Pascal, que se mantém em boa parte das nossas paróquias, tem sofrido, nestes últimos anos, algumas transformações significativas quanto à sua identidade e missão. Passou, num processo de renovação pastoral, da sua função de bênção das casas, por ocasião da Páscoa, para uma oportunidade de anúncio de Cristo Ressuscitado, levado de casa em casa, pelas comunidades cristãs. Hoje muitos partilham esta nova perspetiva da Visita Pascal, quando outros ainda reclamam a sua identidade originária. Perspetivas igualmente aceitáveis.

   Mas para compreendermos o que estamos a considerar, importa responder à pergunta: qual a génese da Visita Pascal? Esta prática pastoral, que provém da baixa Idade Média, devidamente documentada, entre nós, com documentação do século XIV para a cidade de Coimbra, consistia na «bênção das casas» que os párocos deviam realizar por ocasião da Páscoa, particularmente em Sábado Santo.[1] Tal prática inscrevia-se nas obrigações paroquiais, ao mesmo tempo que se caraterizava pela afirmação dos direitos paroquiais, visíveis na oferta de ovos a que se procedia por ocasião de tal visita e bênção. Certamente uma oferta que viria a ser conhecida ao longo dos tempos como folar, associada ao direito do dízimo ou da côngrua-sustentação, igualmente definido como um dos vários direitos paroquiais.

   Esta prática pastoral, curiosamente pouco documentada, quanto à sua origem, foi inscrita no Rituale Romanum de Paulo V, em 1614.[2] Inscrita, portanto, num ritual que resulta do novo ordenamento litúrgico e pastoral do Concílio de Trento e que se tornava, então, uma prática obrigatória, estendida a toda a Igreja Católica.

   Com o Concílio Vaticano II e o novo ordenamento litúrgico e pastoral, a Visita Pascal persistiu, nalguns casos com os traços tridentinos; noutros, com uma nova perspetiva pastoral, a do anúncio de Cristo Ressuscitado; e noutros, ainda, suprimida pela inviabilidade de realização ou por se entender que era uma prática popular supérflua.

   Certo é que no Ritual Romano, na Celebração das Bênçãos, datado de 1984, o conteúdo anterior da Visita Pascal está impresso na denominada «Bênção das Famílias nas suas próprias casas»[3]. Escusado será dizer que o ritual previsto é impraticável nos moldes da nossa Visita Pascal, pela sua extensão e número de casas a visitar. Não obstante, ele permanece e é revalorizado, não já para afirmação de direitos paroquiais, mas para acentuar o dever de cura pastoral de cada pároco em relação às famílias cristãs que vivem no território que lhe está confiado.[4]

   Ora, neste quadro, qual o lugar da Visita Pascal? Parece-me que não é despropositado - fazendo, aliás, todo o sentido! - que ela se tenha convertido num solene anúncio de Cristo Ressuscitado, que a comunidade cristã leva de casa em casa, no contexto da celebração da Páscoa. Mais ainda, com esta reconversão pastoral, a Visita Pascal perde o seu sentido hierárquico, centrada na pessoa do pároco, que abençoa as casas e afirma os seus direitos paroquiais; para se tornar numa ação da própria comunidade cristã, que parte anunciando a todos que Cristo Ressuscitou. Passamos assim de um modelo hierárquico para um modelo comunional. Isto é, da centralidade da hierarquia para a centralidade da comunidade, enquanto realização local do povo de Deus e mistério de comunhão. Neste sentido, esta reconversão da Visita Pascal está muito mais em conformidade com a eclesiologia do Vaticano II. E é, de resto, a única possibilidade da sua sobrevivência.

   Tal não significa que não devamos valorizar a bênção anual das famílias cristãs, como herança própria e identitária da Visita Pascal. Mas esta terá de realizar-se noutros moldes: como verdadeira celebração da fé vivida pelas famílias cristãs; e muito mais distendida no tempo, permitindo uma celebração digna e tranquila com cada família.

   Sem contrariar uma identidade multisecular, a atual orientação pastoral pode valorizar duas práticas, que nascem da mesma experiência, e que muito contribuem para a edificação dos fiéis. Aliás, tendo a Visita Pascal assumido muito traços meramente tradicionais, ela é uma oportunidade de evangelização, se for bem feita, levando, de casa em casa, o anúncio de Cristo Ressuscitado.

Pampilhosa, 22 de Março de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(80ª Reflexão)



[1] DIAS, Geraldo J. A. Coelho – Origem Medieval do Compasso. A Bênção das Casas. In Revista Lusitânia Sacra. 2ª Série, nº 4 (1992), pp. 83, 86 e 88.
[2] Cf. Ibidem, p. 88.
[3] Cf. RITUAL ROMANO – Celebração das Bênçãos. Gráfica de Coimbra: Conferência Episcopal Portuguesa, 1991, pp. 31 – 38.
[4] Cf. Ibidem, p. 31 (Preliminares).