SECULARIZAÇÃO
Emmanuel
Macron, presidente da república francesa, fez um discurso em Paris, no contexto
de um encontro organizado pela Conferência Episcopal Francesa, no passado dia
09 de abril, em que afirmava que a relação Igreja-Estado, em França, está
«semeada de mal-entendidos e desconfianças recíprocas»[1]; mas que a França
necessita da Igreja Francesa e do seu empenho na causa pública, referindo mesmo
que a «França necessita da linfa católica», quer no empenhamento em relação aos
destinos da nação, quer relativamente à União Europeia.
Com este discurso, o presidente francês abre
uma nova porta para as relações Igreja-Estado, no contexto da sociedade
francesa. Sem nunca esquecer a autêntica secularização, enquanto «diferenciação
entre o domínio político e o espiritual»[2], entende que todos têm o
direito e o dever de dar um contributo válido para a edificação da sociedade e
para a sua orientação política. Neste sentido, faz então o apelo veemente à
Igreja Francesa para que ponha ao serviço do bem comum o seu imenso património
de pensamento, de experiência e de vivência, amadurecido na longa duração do
tempo.
Mas, mais do que esta chamada para a ação,
feita à Igreja Francesa, Macron coloca-se numa postura que se distancia de
muitos dos seus antecessores e mesmo de uma certa elite francesa. Macron deixa
perceber que não partilha de um laicismo absoluto, que a França sempre reclamou
para si, como a grande herança da revolução francesa; mas sim de um espírito
«ecuménico», capaz de reconhecer todos e de integrar num diálogo de «verdade» a
especificidade de cada um. Neste sentido, afirma o presidente francês: «sou,
como chefe de Estado, garante da liberdade de crer e de não crer, mas não sou o
inventor nem o promotor de uma religião de Estado que substitui à
transcendência divina um credo republicano». Com esta expressão podemos ver
como o presidente está já distante dos ideais religiosos da revolução francesa!
Macron percebeu, e afirma-o com toda a liberdade, que este tempo não se coaduna
já com hostilizações ideológicas que visam remeter o outro ao silêncio, nem com
um laicismo que rouba à França, à Europa e mesmo à nossa humanidade, a alma de
que tanto necessitamos. Daí que, a finalizar o seu discurso, refira com toda a
clareza: «há uma última liberdade que a Igreja nos deve dar, é a liberdade
espiritual. Porque não somos feitos para um mundo cruzado apenas por objetivos
materialistas. Os nossos contemporâneos precisam, quer acreditem ou não, de
ouvir falar de outra perspetiva sobre o homem, além da perspetiva material.
Precisam de saciar outra sede, que é uma sede de absoluto. Não se trata aqui de
conversão, mas de uma voz que, com os outros, ouse ainda falar do homem como um
ser vivo dotado de espírito. Que ouse falar de algo diferente do temporal, mas
sem abdicar da razão ou do real. Que ouse penetrar na intensidade de uma
esperança, e que por vezes nos faça tocar com o dedo esse mistério da
humanidade que se chama santidade, de que o Papa Francisco diz na exortação
publicada hoje que é o “rosto mais bonito da Igreja”»[3].
Macron expressa-se com toda a sua liberdade
de pensamento, sem ficar preso a imposições ideológicas. Mesmo numa França que
reclama para si a laicidade e, em muitos dos seus setores sociais, se opôs a
este discurso do presidente. Mas a liberdade é isto: capacidade de pensar por
si, de afirmar convicções e de prosseguir no empenho de conciliar
sensibilidades sociais, em atitude de diálogo e não com dogmatismos. Sendo que
tal se torna particularmente impactante quando é assumido pelo mais alto
magistrado de uma nação.
Fiel a si e ao seu pensamento, devidamente
fundamentado (ou não fosse ele um homem de formação filosófica), Macron tem a
coragem de dizer o que pensa e sente sem qualquer constrangimento. Numa visão
alargada e liberta, deixa-nos a ideia clara de que as sociedades só são
verdadeiramente modernas quando integram todos, em vez de hostilizar alguns.
Macron percebe, ainda, o lugar da Igreja Francesa, reclamando a sua ação, mas
sempre na perspetiva de um diálogo que respeite todos. Isto, sim, pode
considerar-se autêntica democracia e verdadeira visão da secularização.
Certamente um exemplo para tantos que ainda
hoje se deixam condicionar por preconceitos, ideias feitas, ou ideologias que
visam apenas atingir interesses próprios. Fica claro, com Macron, que
secularização não é secularismo, mas a justa autonomia da Igreja e do Estado no
exercício das suas funções. Que não se hostilizam, mas se complementam.
Pampilhosa, 26 de Abril de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(85ª Reflexão)
[1]
Cf. Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. In www.snpcultura.org [Consultado a
24.04.2018].
[2]
CATROGA, Fernando – Entre deuses e
césares. Secularização, Laicidade e Religião Civil. Coimbra: Edições
Almedina, 2006, p. 48.
[3]
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, op. cit.