REDESCOBRIR
A MISERICÓRDIA
Sempre me inquietou esta expressão de Jesus, no Evangelho: «o sábado foi
feito para o homem e não o homem para o sábado» (Mc. 2, 27), que se compreende
à luz destoutra: «Eu quero misericórdia e não sacrifício» (Mt.9, 13);
significando que a pessoa está no centro de toda a Sua ação e não a lei. Ou,
ainda, que a lei é para o homem e não o homem para a lei. Se este é o modo de
agir de Jesus, amando cada pessoa, que coloca no centro da Sua atenção,
apontando-lhe caminhos de autêntica felicidade e de verdadeira liberdade, certo
é que não se detém apenas aí: mesmo quando fracassa, a pessoa tem sempre
possibilidade de recomeçar - «eu quero misericórdia e não sacrifício» -,
sabendo que o caminho pode ser sempre refeito e a compaixão do Mestre é sempre
maior que a falha de quem fraquejou. Certamente que Jesus denuncia o mal –
exatamente por isso: porque faz mal à pessoa -, mas ama sempre, e em qualquer
circunstância, cada homem ou cada mulher, nunca confundindo o mal com a pessoa
que o vive. Em qualquer circunstância, a pessoa está sempre acima do bem ou do
mal praticado. Chamado a viver uma vida autêntica, certamente de bem, a pessoa
vale sempre mais que os seus próprios atos.
A
Igreja, enquanto comunidade de discípulos de Jesus, e cada cristão configurado
com Ele pela graça batismal, não podem ter outra forma de agir senão ao estilo
do próprio Jesus – centrados na pessoa, mais do que na lei, e num permanente
exercício de misericórdia.
O
Papa Francisco tem tido, ao longo destes cinco anos do seu pontificado, esta
atitude permanente de misericórdia. Mais, a misericórdia é, certamente, a
atitude que melhor define o seu pontificado. Não esquecemos a advertência que o
Papa nos fazia, aquando do Ano Santo da Misericórdia, celebrado no ano
litúrgico de 2015 – 2016. Escrevia ele, então: «A arquitrave que suporta a vida
da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida
pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece
ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja
passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo» (RM. 10).
Ora,
se estes princípios valem para todas as situações da vida, hão-de valer também
para a realidade do matrimónio e para toda a vida familiar. Se é certo que a
solicitude da Igreja nos deve levar sempre a identificar os males da sociedade
de hoje, que põem em perigo a pessoa e a sua dignidade, nas suas vivências
pessoais, matrimoniais e familiares, apontando caminhos de realização pessoal e
da comunidade familiar, como bem fez o Papa João Paulo II, na sua Encíclica
sobre a Família: Familiaris Consortio;
também é verdade que os princípios propostos não se podem sobrepor à pessoa,
esmagando-a, mesmo quando ela quer reerguer-se para retomar um caminho novo. E
é aqui que, uma vez mais, se chocam, para mim, estes dois princípios: a
primazia da pessoa ou a primazia da lei? Entendo que as leis, também as morais,
têm de ser objetivas e claras! Mas como as utilizamos? Ao serviço das pessoas,
ou esmagando as pessoas? Não tenhamos dúvidas, sempre que a lei se sobrepõe à
pessoa caímos no legalismo do Antigo Testamento; quando nos centramos na pessoa
e lhe propomos a lei como caminho, então sim, somos discípulos de Cristo.
Nesta questão do matrimónio e da família, que tanto tem andado - com
exageros de parte a parte – na comunicação social, sinto ser dever da Igreja
propor caminhos claros e objetivos, mas acolhendo sempre, sempre as pessoas,
permitindo que cada um viva gradualmente os ideais de vida cristã, com caminhos
possíveis entre o ideal e o pessoalmente realizável, sem que ninguém, mas mesmo
ninguém, fique de fora do acolhimento fraterno que a Igreja a todos deve
oferecer. É para aí que o Papa Francisco nos aponta, com o seu magistério. E,
infelizmente, é isso que alguns, presos à letra da lei, se recusam a querer
assumir. Se não for por fidelidade ao magistério pontifício, que ao menos o
seja por fidelidade a Cristo, conscientes das expressões com que iniciámos esta
reflexão. Se também a Ele recusam obediência, então certamente deixarão de
poder falar em Seu nome! Necessitamos, claramente, de redescobrir a
misericórdia!
Pampilhosa, 15 de Fevereiro de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(75ª Reflexão)