sábado, 4 de agosto de 2018


REDESCOBRIR A MISERICÓRDIA

   Sempre me inquietou esta expressão de Jesus, no Evangelho: «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» (Mc. 2, 27), que se compreende à luz destoutra: «Eu quero misericórdia e não sacrifício» (Mt.9, 13); significando que a pessoa está no centro de toda a Sua ação e não a lei. Ou, ainda, que a lei é para o homem e não o homem para a lei. Se este é o modo de agir de Jesus, amando cada pessoa, que coloca no centro da Sua atenção, apontando-lhe caminhos de autêntica felicidade e de verdadeira liberdade, certo é que não se detém apenas aí: mesmo quando fracassa, a pessoa tem sempre possibilidade de recomeçar - «eu quero misericórdia e não sacrifício» -, sabendo que o caminho pode ser sempre refeito e a compaixão do Mestre é sempre maior que a falha de quem fraquejou. Certamente que Jesus denuncia o mal – exatamente por isso: porque faz mal à pessoa -, mas ama sempre, e em qualquer circunstância, cada homem ou cada mulher, nunca confundindo o mal com a pessoa que o vive. Em qualquer circunstância, a pessoa está sempre acima do bem ou do mal praticado. Chamado a viver uma vida autêntica, certamente de bem, a pessoa vale sempre mais que os seus próprios atos.

    A Igreja, enquanto comunidade de discípulos de Jesus, e cada cristão configurado com Ele pela graça batismal, não podem ter outra forma de agir senão ao estilo do próprio Jesus – centrados na pessoa, mais do que na lei, e num permanente exercício de misericórdia.

   O Papa Francisco tem tido, ao longo destes cinco anos do seu pontificado, esta atitude permanente de misericórdia. Mais, a misericórdia é, certamente, a atitude que melhor define o seu pontificado. Não esquecemos a advertência que o Papa nos fazia, aquando do Ano Santo da Misericórdia, celebrado no ano litúrgico de 2015 – 2016. Escrevia ele, então: «A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo» (RM. 10).

   Ora, se estes princípios valem para todas as situações da vida, hão-de valer também para a realidade do matrimónio e para toda a vida familiar. Se é certo que a solicitude da Igreja nos deve levar sempre a identificar os males da sociedade de hoje, que põem em perigo a pessoa e a sua dignidade, nas suas vivências pessoais, matrimoniais e familiares, apontando caminhos de realização pessoal e da comunidade familiar, como bem fez o Papa João Paulo II, na sua Encíclica sobre a Família: Familiaris Consortio; também é verdade que os princípios propostos não se podem sobrepor à pessoa, esmagando-a, mesmo quando ela quer reerguer-se para retomar um caminho novo. E é aqui que, uma vez mais, se chocam, para mim, estes dois princípios: a primazia da pessoa ou a primazia da lei? Entendo que as leis, também as morais, têm de ser objetivas e claras! Mas como as utilizamos? Ao serviço das pessoas, ou esmagando as pessoas? Não tenhamos dúvidas, sempre que a lei se sobrepõe à pessoa caímos no legalismo do Antigo Testamento; quando nos centramos na pessoa e lhe propomos a lei como caminho, então sim, somos discípulos de Cristo.

   Nesta questão do matrimónio e da família, que tanto tem andado - com exageros de parte a parte – na comunicação social, sinto ser dever da Igreja propor caminhos claros e objetivos, mas acolhendo sempre, sempre as pessoas, permitindo que cada um viva gradualmente os ideais de vida cristã, com caminhos possíveis entre o ideal e o pessoalmente realizável, sem que ninguém, mas mesmo ninguém, fique de fora do acolhimento fraterno que a Igreja a todos deve oferecer. É para aí que o Papa Francisco nos aponta, com o seu magistério. E, infelizmente, é isso que alguns, presos à letra da lei, se recusam a querer assumir. Se não for por fidelidade ao magistério pontifício, que ao menos o seja por fidelidade a Cristo, conscientes das expressões com que iniciámos esta reflexão. Se também a Ele recusam obediência, então certamente deixarão de poder falar em Seu nome! Necessitamos, claramente, de redescobrir a misericórdia!  

Pampilhosa, 15 de Fevereiro de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(75ª Reflexão)