sábado, 4 de agosto de 2018


«I HAVE A DREAM»

   Celebrámos, há uma semana atrás, o cinquentenário da morte de Martin Luther King, o grande ícone da luta pela igualdade entre todos os homens. Ficou célebre o seu discurso «I have a dream», proferido a 28 de Agosto de 1963, em Washington, aquando da marcha para esta cidade, capital política dos Estados Unidos.

   Luther King deixou-nos, nesse discurso, duas frases programáticas, que ainda hoje ecoam, desafiando a nossa consciência na luta pela igualdade entre todos os homens. Dizia: «Eu tenho um sonho que, um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos senhores de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade», acrescentando, ainda: «Eu tenho um sonho. O sonho de ver os meus filhos julgados pela sua personalidade e não pela cor da sua pele». Frases que encerram a luta de um tempo que se projetou até ao presente.

   Luther King pronunciou este discurso em meados do século XX, numa luta pacífica pelos direitos dos negros e, sobretudo, pela igualdade entre todos os homens. Volvidos cinquenta anos sobre a morte deste homem maior, vivemos ainda uma realidade inquietante, que oscila entre o reconhecimento da igualdade entre todos os homens e o recrudescimento de manifestações racistas. Sobretudo devido ao ressurgimento de movimentos políticos e sociais de extrema-direita.

   As razões para a distinção de raças, no passado, são múltiplas, mas que podemos enquadrar em três campos de compreensão: históricas, sociais e culturais. Historicamente, o racismo encontra fundamento nos movimentos de escravos e na consciência da época de que os negros eram uma raça menor. Chegando-se ao extremo de considerar que estes nossos irmãos não tinham alma. Afirmação para a qual muito contribuiu a Igreja, na consciência da época. Neste sentido, afirma-se uma distinção inequívoca entre brancos e pretos, num eurocentrismo dominante, que tratava os negros como servos. Do ponto de vista social, a separação era evidente: os negros eram remetidos para espaços próprios, não podendo aceder à convivência social própria dos brancos. A distinção social foi a que mais se prolongou no tempo. Naturalmente que estas mundividências encontram o seu fundamento em conceções culturais. Será difícil julgar o passado com o quadro mental do presente; mas será igualmente difícil viver do passado com o quadro mental atual. Na verdade, a luta pela igualdade transformou as nossas consciências e conduziu-nos a uma compreensão nova de toda a humanidade. Somos, efetivamente, todos iguais, enquanto homens e mulheres, participantes da mesma dignidade humana, independentemente da cor da pele ou do quadrante geográfico em que vivamos. Esta parece ser uma conquista do século XX, consolidada no século XXI. Todavia, infelizmente, ainda não é assim. Próximos do final da segunda década do século XXI, vemos recrudescer o racismo, quando se afirmam de novo grupos xenófobos, alguns deles politicamente legitimados por forças de extrema-direita que tendem a afirmar-se na Europa e nos Estados Unidos da América. O que parecia ser uma conquista, afinal ainda o não é na sua plenitude! Por certo, não regressaremos às origens; mas há um caminho longo a trilhar para alcançarmos a almejada igualdade. Não apenas ideológica, mas verdadeiramente social e cultural. Enquanto o acesso a oportunidades de formação, de emprego ou de convivência social não forem realmente iguais, certamente que não podemos afirmar a existência de verdadeira igualdade.

   Portugal tem sido, desde há muito, um país de acolhimento. E igualmente de integração e de respeito pela identidade de cada um – identidade pessoal e cultural. Mas vejamos o que se passa nalguns bairros sociais, sobretudo nas periferias das grandes cidades; vejamos algumas expressões ténues de exclusão e de puro racismo na convivência social, particularmente no mundo juvenil da noite; ou sondemos ainda o sentimento de tantos concidadãos nossos sobre as diferenças da cor da pele. Apesar de sermos um país brando e acolhedor, o racismo também ainda não foi completamente erradicado do meio de nós.

   Necessitamos de continuar a afirmar que somos todos iguais; que somos todos dotados da mesma dignidade e que nos é devido respeito igual. Necessitamos, afinal, de continuar a corresponder ao apelo de Luther King: «Eu tenho um sonho. O sonho de ver os meus filhos julgados pela sua personalidade e não pela cor da sua pele».

Pampilhosa, 12 de Abril de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(83ª Reflexão)