terça-feira, 28 de abril de 2009

D. Nuno Álavares Pereira – Apontamentos de Roma.

Neste Domingo que passou, como muitos outros Portugueses, pude participar em Roma na Canonização de D. Nuno de Santa Maria Álvares Pereira, o Condestável que se tornou «frade donato», para se dedicar totalmente «ao serviço do Senhor, de Maria – a sua terna Padroeira que sempre venerou –, e dos pobres, nos quais reconhece o rosto de Jesus»[1]. Foi uma experiência rica de espiritualidade, de comunhão eclesial e de comunhão presbiteral, já que tive a graça de, com muitos outros sacerdotes, estar no serviço de distribuição da comunhão, o que me permitiu viver mais intimamente toda a celebração Eucarística presidida pelo Papa.
Um conjunto de reflexões me foram surgindo, antes, durante e depois da celebração. Desde logo, as minhas motivações pessoais para me encontrar ali; depois, a participação portuguesa em Roma – tão entusiástica, reconhecida, e claramente feliz com tão significativo acontecimento; e ainda as atitudes expressas por alguns meios de comunicação social, relativamente a um acontecimento que nos deveria mobilizar muito mais profundamente.
1. As minhas razões pessoais talvez sejam, no contexto deste artigo, as que menos peso têm. Todavia, não posso deixar de considerar que foi importante para mim participar na Canonização de um homem que marca indelevelmente a nossa identidade; que é capaz de abandonar todos os seus bens para, numa atitude de extrema humildade servir os mais pobres dos pobres; e que, ainda por cima, é natural – muito provavelmente – de um espaço que me é tão próximo fisicamente. Acrescendo ainda que a freguesia que me viu nascer foi pertença de seu meio-irmão, Rodrigo, que veio a constituir a linhagem dos morgados de Águas Belas. Também aqui nos faz bem sentirmos a «santidade próxima», pois que evidencia esse convite que a Lúmen Gentium do Vaticano II a todos dirige: o convite universal à santidade!

2. Interessante foi a participação portuguesa: cerca de dois mil concidadãos congregados em Roma para celebrar o mesmo acontecimento. Certamente – pelos testemunhos que se puderam recolher – não apenas para celebrar a história, numa figura do passado; mas sim para celebrar a história que, enquanto ciência do passado, lança desafios ao presente e ao futuro. É assim com o Santo Condestável: distante de nós no tempo, é mais que contemporâneo nos desafios que nos lança à vivência de uma séria e profunda identidade cristã. E os portugueses têm consciência disso. De resto, esta poderá ser uma óptima oportunidade para fazer catequese sobre os grandes desafios que nos lança o compromisso da fé, partindo de tão notável testemunho. O Papa referiu-o bem, quando, sem descuidar o enquadramento histórico da sua vida e acção, soube apresentá-lo como modelo de espiritualidade e de serviço ao bem comum, capaz de nos interpelar no hoje da vivência da fé – num mundo que necessita de redescobrir a espiritualidade e de promover, de modo mais decidido, esse mesmo bem comum.
Certamente que esta vivência de tantos concidadãos, expressa na sua alegria e entusiasmo, há-de dar frutos no tempo que se aproxima.

3. Não pude deixar de registar, contudo, algumas reacções da «elite» política e intelectual deste país, que precederam a Canonização. Tais reacções foram – ainda que de modo não muito expressivo – veiculadas por alguns meios de comunicação. Eu próprio expressava assim a minha admiração em mensagem a alguns amigos: «Há uma contestação dos senhores laicos à Canonização de D. Nuno Álvares Pereira que é impressionante. Aliás, bacoca! Se são laicos, porque os incomoda tanto a Canonização deste Santo Português?». Enfim, não me detenho aqui na oposição que parece persistir relativamente a tudo o que vem da Igreja Católica – de maior, ou menor valor para a sociedade portuguesa! Não deixei de considerar como curioso um artigo de tal natureza bem patente num semanário que, nesta semana, contestava a censura, enquadrada no contexto das celebrações do 25 de Abril (Visão nº 482, 23 a 29 de Abril de 2009). Se é certo que o artigo apenas fazia notícia, não deixou de me questionar a exclusiva publicação da «polémica». E o resto? E os outros cidadãos? E o valor simbólico do reconhecimento de um português, mesmo que não numa perspectiva de fé? Não serão dignos de notícia? E porque não a representação a mais alto nível – a representação de Estado? Não foi Nuno Álvares Pereira, ele mesmo, um cidadão que exerceu funções de Estado ao mesmo nível? De resto, num período tão conturbado da nossa história e da nossa independência!... Representação ao mais alto nível não era apenas – como foi – um direito do Estado Português; era também um claro dever! Por vezes fica-me a dúvida se, porventura, alguns destes senhores pensam que o Estado Português apenas surgiu com a República?!.... Pois; mas não: Portugal é uma realidade dinâmica, na qual se congregaram muitos esforços para a erguer como Nação! E o Santo Condestável foi dessas forças maiores! Aliás, Portugal antes da República conta com cerca de oito séculos de história. Construímos na continuidade e não na oposição! Somos o que nos legaram e devemos fazer jus a essa herança!
Se porventura fosse uma personalidade de reconhecida afirmação «laica» bradar-se-ia se as autoridades se não fizessem representar; mas como era uma figura da Igreja, ainda que de reconhecida acção política, minimiza-se! Naturalmente que não peço fé aos governantes – cada um saberá de si! -; mas peço, sim, responsabilidade cívica e política! Por isso a representação do Presidente da República, da Assembleia e das Forças Armadas, fizeram jus ao seu dever! Se, por coincidência de datas, proclamamos a liberdade; se a temos como valor adquirido; se a queremos promover; não coloquemos mordaças aos outros, quando as não queremos para nós! É o mínimo de bom senso. Aliás, uma verdadeira liberdade aceita a diversidade enquanto afirmação de uma séria e madura democracia! Também neste sentido a figura de Álvares Pereira é um desafio à verdade, à coerência, ao respeito pelos outros e pelas suas opções!
Na verdade, muitas são as lições que havemos de recolher deste Homem, deste Estadista, deste Cristão, deste Frade, deste Santo. Sem reservas, que cada um de nós se deixe interpelar por ele. Certamente nem tudo está dito! Pelo contrário: muito terá ainda para nos ensinar!...

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho

[1] “Nuno Álvares Pereira”, Canonizzazione, [Guia da Celebração], Piazza San Pietro. 26 de Aprile 2009, p. 30.