quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O «CAIM» DE SARAMAGO!

Publicado o romance «Caim» de José Saramago, as críticas da Igreja Católica ao seu novo escrito não se fizeram esperar. Mas, a verdade é que elas foram suscitadas pelo próprio escritor, ao afirmar (num golpe de marketing) que a «Bíblia é um manual de maus costumes» e ao deixar entrever que o seu romance afectaria simplesmente os Judeus e não tanto os Católicos, por estes últimos serem uns ignorantes no conhecimento da Escritura (e não só! Sim, é que das palavras de Saramago depreendem-se outras ignorâncias!). Certo é que o próprio Vaticano já veio desvalorizar tal polémica, dizendo que a Igreja está acima de toda esta controvérsia. Contudo, não deixei de me sentir indignado com a afirmação do escritor quando este referia: «surpreende-me a frivolidade dos senhores da Igreja»! Ora, como frivolidade significa «futilidade», «insignificância» ou «coisa de pouco valor»; sabendo que por tal se expressa – aplicado aos homens da Igreja – uma consideração de gente sem importância nos argumentos a que aduzem (ficando-me agora só por este nível), não deixo de fazer as seguintes considerações:

1 – O Romance, enquanto composição literária, obedece à ficção. Assim cada autor é sumamente livre de criar segundo a sua própria sensibilidade, criatividade e objectivos delineados para a obra que idealizou. Quanto a isto nada há a opor. Aliás, temos magníficos exemplos de criação neste género literário que tanto enriquecem as nossas mundividências e capacidades de pensar a realidade, a partir do seu imaginário. É nesta perspectiva de produção livre que se insere – como os demais Romances – o «Caim» de Saramago: personagem central de toda a obra que percorre uma parte da história bíblica, capaz de ir ao futuro, como «futuro presente», na linguagem do autor.

2 – Todavia, quando um escritor usa algumas fontes, sejam elas históricas, narrativas, mitológicas, ou de qualquer outra natureza, o que dele se espera é que crie na fidelidade a essas mesmas fontes, usando-as com critério sólido, coerente e – condição fundamental – com um conhecimento profundo daquilo que lhe serve de ponto de partida. Ora, o problema de Saramago no seu «Caim» é exactamente a «frivolidade» – de que acusa os homens da Igreja – no modo como usa a Escritura e, concretamente, algumas das suas narrativas. Efectivamente, o autor utiliza o texto da forma mais imediata para atingir os seus fins. Não se preocupa em contextualizar, em inserir o texto no contexto, em compreender o tipo de narrativa que suporta a sua criação; o que produz um ponto de partida manifestamente inconsistente. A abordagem do texto bíblico pressupõe um mínimo de hermenêutica que o autor simplesmente recusa efectuar. Não se trataria aqui, obviamente, de uma exposição teológica, mas de uma fundamentação segura, do ponto de vista científico.

3 – Mas o mais significativo é que Saramago pretende usar o texto para atingir dois objectivos muito claros: branquear a imagem de Caim (ícone da verdadeira humanidade, inteiramente livre) e ridicularizar a ideia de Deus (o mito que interessa apagar da consciência do homem, tornando-o algo de profundamente nefando para a história da humanidade). Neste sentido, Caim é o homem bom, que teve a desdita de matar seu irmão por culpa do próprio Deus; enquanto este último é o ser mau, caprichoso, violento, invejoso, vingativo, vaidoso, desapiedado, a que o autor chega a chamar «louco»; isto para não referir já outros epítetos muito mais contundentes nas considerações que este faz da pessoa divina.

4 – Para além do romance em si – esperando já uma natural reacção das entidades religiosas, porque Saramago não é estulto – a polémica surge nas acusações que o autor formulou contra Deus e contra a Igreja na apresentação do seu livro. Ora, neste sentido, devo dizer ao Senhor José Saramago que a ideia de Deus não só é razoável, como é legítima. De igual modo, na Igreja existe também muita gente inteligente, culta e de grande valor intelectual. Não só nas Ciências Sagradas (nas várias áreas da Teologia, a que pertence o estudo da Sagrada Escritura), como também na Filosofia, na História, na Literatura, entre muitas outras áreas em que tantos se têm distinguido. Nomeadamente no Romance. Portanto, um pouco de humildade e de consideração pelos outros não lhe faria mal nenhum. Quanto à leitura desta última obra da sua lavra, Saramago deve ficar ainda ciente que muitos de nós lemos e estamos atentos ao que no nosso meio se vai produzindo. Passe a imodéstia, tive oportunidade de ler «Caim» no espaço de menos de vinte e quatro horas. Portanto, o velho preconceito de que o clero e demais pessoas da Igreja são ignorantes já teve o seu tempo. Impõe-se um necessário respeito mútuo para que o diálogo seja possível.

Em conclusão, «Caim» é, como já deixei entrever, uma leitura ideológica de algumas narrativas bíblicas, manifestamente de quem tem alguns problemas com a ideia de Deus. E que, consequentemente – mesmo que respeitando a sua legitimidade – mais não faz do que afirmar o seu ateísmo militante. E se as opções de cada um são respeitáveis, não se pode aceitar é que estas se afirmem contra as opções dos outros. Veja-se como no romance todas as personagens aliadas de Deus são mal vistas; enquanto, ao contrário, Caim (a ideia do homem de Saramago) é o herói, o único que permanece capaz de enfrentar Deus. Não seria demasiado compreender – e isto também assiste ao leitor e à sua interpretação – que só o homem que se opõe a Deus é merecedor de permanência, enquanto todos os outros devem desaparecer. Assim termina, de resto, o romance – da arca de Noé apenas saem os animais e a humanidade de Caim. Todos os outros seres humanos foram simplesmente aniquilados. Este epílogo traduz bem a atitude do autor. Legítima, por certo! Mas tão legítima como aquela de quem se lhe opõe e possui um outro entendimento de Deus, do homem e do seu percurso na concretização da história!

Carlos Alberto da Graça Godinho