A propósito da celebração da Festa da Dedicação da Catedral de Coimbra, celebrada no passado dia 16 do corrente, e sem pretender acrescentar nada de novo ao que muitos, bem mais credenciados do que eu, já afirmaram, permito-me, não obstante, fazer sobre este assunto algumas considerações. E a primeira é a de que, não raro, olhamos as realidades que constituem o nosso património espiritual, cultural e arquitectónico com um excesso de coração que, por vezes, ofusca a nossa razão. Aconteceu comigo na defesa da Sé Nova de Coimbra, reclamando para ela a dignidade que lhe é própria enquanto actual Catedral da Diocese. Contudo, depois de algumas leituras atentas e – mesmo que paradoxalmente – «apaixonadas»; inicialmente das excelentes obras do Reverendo Pe. Dr. José Eduardo Reis Coutinho, sobre a Sé Velha e a Sé Nova de Coimbra (esta última a Igreja dos Jesuítas), a que se seguiu a da excelente obra do grande Mestre Doutor António de Vasconcelos, sobre a Sé Velha de Coimbra; tive oportunidade – essa que advém do esclarecimento – de rever as minhas opções interiores. Assim:
1. É inequívoco o dever de reconhecer o valor da Sé Velha! Não apenas na sua dimensão arquitectónica, enquanto património nacional – pois que esse ninguém o recusa – mas na sua identidade e na natureza da sua construção. Efectivamente, a Sé Velha de Coimbra foi a única Igreja construída, de raiz, para ser a mãe de todas as Igrejas da Diocese. Neste sentido, ela expressa a sua identidade, mas encerra igualmente, na sua história, a dinâmica da construção da Igreja em Coimbra – a história da Diocese – compendiando a vivência de tantos homens e mulheres cristãos que, a partir dela, alimentaram a sua fé, numa comunhão permanente com os Bispos que desde o seu seio conduziram esta «porção do Povo de Deus», que constitui a vetusta Diocese Coimbrã. E que Bispos cruzam a sua história com a da sua Catedral!... Na impossibilidade de referir todos, relembremos apenas alguns dos nomes maiores: D. Miguel Pais Salomão, que constrói a Catedral; D Jorge de Almeida, esse príncipe da Igreja que dotou a sua Catedral, para além de outros elementos, do seu magnifico retábulo; D. Frei João Soares, prelado do Concilio de Trento, que haveria de dotar a sua Igreja da expressiva Capela do Santíssimo, com toda a beleza que a pedra trabalhada nos permite observar; D. Afonso de Castelo Branco, que, para além de Vice-Rei do Reino, foi um dos grandes benfeitores da cidade, onde, ao longo de trinta anos, exerceu proficuamente o seu ministério episcopal; e D. Manuel Correia de Bastos Pina, homem de profunda sensibilidade, cultura e visão esclarecida das realidades, para além de grande empreendedor na valorização do património diocesano, que, entre muitas outras acções, providenciou para que se efectuasse a recuperação da sua antiga Sé. Mas ao lado destes, quantos outros bispos?!... Podíamos referir, ainda, a grandeza de um D. Miguel da Anunciação que, após a sua libertação de Pedrouços, onde esteve encarcerado ao longo de oito anos, regressou à sua Sé, entretanto, mudada de uma para outra Igreja. E com que sentimentos? Enfim… é toda esta realidade viva que se projecta do passado que a veneranda Igreja Catedral de Coimbra reflecte a partir de si.
2. A transição para a Sé Nova – a Igreja dos Jesuítas – insere-se num período complexo das relações do poder régio com as instâncias eclesiásticas, mormente com a Companhia de Jesus, nas quais sobressai a incontornável imagem do Marquês de Pombal. Se é certo que a Igreja dos Jesuítas, vaga após a sua expulsão, servia melhor os ofícios religiosos do Cabido ou aqueles a que os Bispos presidiam, a verdade é que houve uma intenção clara de desapossar a Ordem expulsa de qualquer dos seus bens. A mudança da Sé Velha para a então chamada Sé Nova dá-se a 21 de Outubro de 1772, organizando-se para tal uma imponente procissão, que incorporava muito do clero regular, quase todo o clero secular da Diocese, bem como diversas autoridades locais, como era próprio da organização social no período em questão. Nesta procissão procede-se à trasladação do Santíssimo Sacramento, de uma Igreja para a outra. E, segundo ainda notícia da época, à noite foram várias as luminárias que se acenderam por toda a cidade celebrando esta mudança. Reconhecia-se como Catedral a Igreja dos Jesuítas que, dois dias antes, a 19 de Outubro, havia sido entregue pelo próprio Marquês de Pombal aos Cónegos Nuno Pereira Coutinho e Rodrigo de Almeida, procuradores do Cabido, conjuntamente com o provisor do Bispado, enquanto procurador da Mitra.
Certo é que esta mudança – pela sua natureza e pelos elementos jurídicos e litúrgicos que encerra – não destituiu a Velha Catedral da sua própria identidade. Destituiu-a, sim, simbolicamente, deixando-a entregue a uma certa voragem que em muito a prejudicou. Mas é igualmente inequívoco – como se pode perceber das obras indicadas, da autoria do Reverendo Pe. Dr. José Eduardo Reis Coutinho – que o facto histórico é inultrapassável: a Sé Velha foi construída para ser a Igreja Maior de Coimbra e a Sé Nova mantém, ainda hoje, os seus traços que a definem claramente como Igreja da Companhia de Jesus. Além disso, como refere António de Vasconcelos, apesar destas vicissitudes porque passou a Sé Velha, esta Igreja não perdeu as honras e prerrogativas de Catedral de Coimbra, bem como o seu título, pois que nunca, por direito, lhe foram retirados.
De resto, na sequência da exemplar restauração que, ao longo de quase dez anos, esta Igreja veio a merecer, com os contributos ímpares do Mestre António Augusto Gonçalves, do Bispo Conde D. Manuel Correia de Bastos Pina e da Rainha D. Amélia de Orleans; e após pedido para que se alterasse a data da Dedicação da Igreja de 31 de Agosto para 16 de Novembro, por ser mais condizente com a disponibilidade dos Bispos e do Cabido, vemos como a Cúria Romana anuiu a tal solicitação, através da Sagrada Congregação dos Ritos, por decreto de 26 de Abril de 1916, em que se concedia esta outra data para tal celebração. E referia-se, é óbvio, àquela que, por direito, sempre fora a Catedral de Coimbra.
3. Conclui-se, então, que a celebração da Dedicação da Catedral, a efectuar na Sé Velha, não é apenas um acto de cultura e de sensibilidade. É, sim, um acto de justiça e de verdadeira piedade, num respeito sincero pelo dinamismo espiritual que brotou daquele espaço e que hoje se continua, é certo, na Nova Catedral. Mas esta última não anula, nem substitui a primeira. Aliás, a figura jurídica que os autores nomeados apontam, a que se junta a opinião de muitos outros, como a do actual pároco da Sé Velha, é de todo razoável – que se mantenha como Catedral a Sé Velha e a Sé Nova se reconheça como pró-Catedral. Ninguém, por certo, desejaria mudar a Cátedra do Bispo de uma para a outra Igreja – agora num processo inverso ao que a história registou –; trata-se, isso sim, de reconhecer a mesma dignidade de cada Igreja e de as recolocar no seu justo lugar como expressão visível da Igreja Coimbrã.
Carlos Alberto da Graça Godinho
1. É inequívoco o dever de reconhecer o valor da Sé Velha! Não apenas na sua dimensão arquitectónica, enquanto património nacional – pois que esse ninguém o recusa – mas na sua identidade e na natureza da sua construção. Efectivamente, a Sé Velha de Coimbra foi a única Igreja construída, de raiz, para ser a mãe de todas as Igrejas da Diocese. Neste sentido, ela expressa a sua identidade, mas encerra igualmente, na sua história, a dinâmica da construção da Igreja em Coimbra – a história da Diocese – compendiando a vivência de tantos homens e mulheres cristãos que, a partir dela, alimentaram a sua fé, numa comunhão permanente com os Bispos que desde o seu seio conduziram esta «porção do Povo de Deus», que constitui a vetusta Diocese Coimbrã. E que Bispos cruzam a sua história com a da sua Catedral!... Na impossibilidade de referir todos, relembremos apenas alguns dos nomes maiores: D. Miguel Pais Salomão, que constrói a Catedral; D Jorge de Almeida, esse príncipe da Igreja que dotou a sua Catedral, para além de outros elementos, do seu magnifico retábulo; D. Frei João Soares, prelado do Concilio de Trento, que haveria de dotar a sua Igreja da expressiva Capela do Santíssimo, com toda a beleza que a pedra trabalhada nos permite observar; D. Afonso de Castelo Branco, que, para além de Vice-Rei do Reino, foi um dos grandes benfeitores da cidade, onde, ao longo de trinta anos, exerceu proficuamente o seu ministério episcopal; e D. Manuel Correia de Bastos Pina, homem de profunda sensibilidade, cultura e visão esclarecida das realidades, para além de grande empreendedor na valorização do património diocesano, que, entre muitas outras acções, providenciou para que se efectuasse a recuperação da sua antiga Sé. Mas ao lado destes, quantos outros bispos?!... Podíamos referir, ainda, a grandeza de um D. Miguel da Anunciação que, após a sua libertação de Pedrouços, onde esteve encarcerado ao longo de oito anos, regressou à sua Sé, entretanto, mudada de uma para outra Igreja. E com que sentimentos? Enfim… é toda esta realidade viva que se projecta do passado que a veneranda Igreja Catedral de Coimbra reflecte a partir de si.
2. A transição para a Sé Nova – a Igreja dos Jesuítas – insere-se num período complexo das relações do poder régio com as instâncias eclesiásticas, mormente com a Companhia de Jesus, nas quais sobressai a incontornável imagem do Marquês de Pombal. Se é certo que a Igreja dos Jesuítas, vaga após a sua expulsão, servia melhor os ofícios religiosos do Cabido ou aqueles a que os Bispos presidiam, a verdade é que houve uma intenção clara de desapossar a Ordem expulsa de qualquer dos seus bens. A mudança da Sé Velha para a então chamada Sé Nova dá-se a 21 de Outubro de 1772, organizando-se para tal uma imponente procissão, que incorporava muito do clero regular, quase todo o clero secular da Diocese, bem como diversas autoridades locais, como era próprio da organização social no período em questão. Nesta procissão procede-se à trasladação do Santíssimo Sacramento, de uma Igreja para a outra. E, segundo ainda notícia da época, à noite foram várias as luminárias que se acenderam por toda a cidade celebrando esta mudança. Reconhecia-se como Catedral a Igreja dos Jesuítas que, dois dias antes, a 19 de Outubro, havia sido entregue pelo próprio Marquês de Pombal aos Cónegos Nuno Pereira Coutinho e Rodrigo de Almeida, procuradores do Cabido, conjuntamente com o provisor do Bispado, enquanto procurador da Mitra.
Certo é que esta mudança – pela sua natureza e pelos elementos jurídicos e litúrgicos que encerra – não destituiu a Velha Catedral da sua própria identidade. Destituiu-a, sim, simbolicamente, deixando-a entregue a uma certa voragem que em muito a prejudicou. Mas é igualmente inequívoco – como se pode perceber das obras indicadas, da autoria do Reverendo Pe. Dr. José Eduardo Reis Coutinho – que o facto histórico é inultrapassável: a Sé Velha foi construída para ser a Igreja Maior de Coimbra e a Sé Nova mantém, ainda hoje, os seus traços que a definem claramente como Igreja da Companhia de Jesus. Além disso, como refere António de Vasconcelos, apesar destas vicissitudes porque passou a Sé Velha, esta Igreja não perdeu as honras e prerrogativas de Catedral de Coimbra, bem como o seu título, pois que nunca, por direito, lhe foram retirados.
De resto, na sequência da exemplar restauração que, ao longo de quase dez anos, esta Igreja veio a merecer, com os contributos ímpares do Mestre António Augusto Gonçalves, do Bispo Conde D. Manuel Correia de Bastos Pina e da Rainha D. Amélia de Orleans; e após pedido para que se alterasse a data da Dedicação da Igreja de 31 de Agosto para 16 de Novembro, por ser mais condizente com a disponibilidade dos Bispos e do Cabido, vemos como a Cúria Romana anuiu a tal solicitação, através da Sagrada Congregação dos Ritos, por decreto de 26 de Abril de 1916, em que se concedia esta outra data para tal celebração. E referia-se, é óbvio, àquela que, por direito, sempre fora a Catedral de Coimbra.
3. Conclui-se, então, que a celebração da Dedicação da Catedral, a efectuar na Sé Velha, não é apenas um acto de cultura e de sensibilidade. É, sim, um acto de justiça e de verdadeira piedade, num respeito sincero pelo dinamismo espiritual que brotou daquele espaço e que hoje se continua, é certo, na Nova Catedral. Mas esta última não anula, nem substitui a primeira. Aliás, a figura jurídica que os autores nomeados apontam, a que se junta a opinião de muitos outros, como a do actual pároco da Sé Velha, é de todo razoável – que se mantenha como Catedral a Sé Velha e a Sé Nova se reconheça como pró-Catedral. Ninguém, por certo, desejaria mudar a Cátedra do Bispo de uma para a outra Igreja – agora num processo inverso ao que a história registou –; trata-se, isso sim, de reconhecer a mesma dignidade de cada Igreja e de as recolocar no seu justo lugar como expressão visível da Igreja Coimbrã.
Carlos Alberto da Graça Godinho