sexta-feira, 29 de junho de 2007

A Sedução do Divino!

"Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir! Dominaste-me e obtiveste o triunfo."(Jer. 20, 7)
Esta expressão, proclamada por Jeremias sete séculos antes de Jesus - que ele proclama em perspectiva pessoal -, bem pode ser a expressão da nossa condição humana quando se dispõe a procurar o Divino. O homem de cada tempo e, por isso, o homem deste tempo, necessita de procurar Este Divino. Procura-O na compreensão do Seu ser; procura-O em obediência à sua razão, esclarecendo conceitos, ideias, questões; procura-O em atitude de fé, escutando-O e respondendo-Lhe. Mas, acima de tudo, o homem procura o Divino no limite de si próprio, na sua autoconsciência, na percepção da sua efemeridade, muito embora pressentindo o seu destino absoluto. É aí, no mais íntimo de cada um, que Deus se revela, se autocomunica em experiência sedutora. Importante há-de ser sempre a humana atitude de inteira disponibilidade para acolher e dialogar com tudo o que ao coração se coloca como interpelação e chamamento. É aí - quantas vezes -, no mais recôndito do existir como mistério, que Deus surge em acto de sedução. Não uma sedução por limite, mas uma sedução por amor. Não numa luta por triunfo, mas numa luta por dádiva de Si. É também aí que o homem se experimenta como fruto desse amor e como recepção generosa.
Não raro vou encontrando atitudes limitativas, porventura desonestas, na capacidade que o homem tem de se olhar a si mesmo, sem receios, em toda a sua nudez. Conceitos filosóficos, ideias absolutizadas, esquemas pré-definidos, tudo pode servir de justificação para o existir. No entanto, esse existir, enquanto mistério, só ali encontra sentido: na verdade que brota e preenche o anseio humano. E esta verdade será apenas uma: a que possibilita, e o coração aceita, como a total realização de si.
A luta do homem pela afirmação da sua autonomia, do Renascimento à pós-modernidade, levou-o, quantas vezes, ao completo isolamento, ao efémero de uma consciência marcada pelo limite, à frustração completa de si e à renúncia da sua exigência mais íntima de plenitude e realização. Dos racionalismos, de Descartes e de outros, aos existencialismos que se formulam como esboços de resposta ao exisitir, tudo parece ser ultrapassado pela medida do tempo e da história. A actualidade, centrada na afirmação de algumas destas ideias, é um tempo de profundas carências, onde a falta de sentido parece impôr-se. É também, por isso, um tempo de profunda procura! E aqui, sim, sejamos honestos, não limitemos o coração humano pelos nossos preconceitos; demos-lhe o gozo da liberdade na busca sincera da possível realização e da plenitude.
É nesta atitude que contemplo grandes homens da nossa cultura: Guerra Junqueiro, Antero de Quental e, mais recentemente, Miguel Torga ou mesmo Virgílio Ferreira.
Todos eles marcados por uma intensa procura, feita de total sinceridade, de liberdade, mas, sobretudo, buscando a verdade sem medos nem preconceitos. Se uns chegaram à contemplação do Divino, de forma explícita, acredito que outros o desejaram, contemplando-O no limite do seu existir. A angústia de Virgílio Ferreira, na contemplação do ser humano, encontra a solidariedade de Torga, que, não obstante, chega a afirmar:
"Vivo
A sonhar ser conviva
Doutro banuete"
(Fome Indecisa, 1949)
Mas se porventura destes se não pode afirmar um encontro pessoal e jubiloso com o Divino, pelo menos de forma explícita, o mesmo não acontece com Quental ou Junqueiro. Este último, o grande bastião do sarcasmo na luta anticlerical, não deixa de ser o seu mais severo crítico, de tal modo que pretende refazer essa obra A Velhice do Padre Eterno. Sabendo que seria tarde e questionado sobre o porquê, é o próprio que responde: "Devia isto à minha consciência! Pratiquei erros e entendo que confessá-los não é vergonha mas virtude." Mais ainda, após a denúncia profunda do seu actuar, ele expressa a sua nova realidade: "Oh! Mas agora modificaram-se totalmente as minhas opiniões sobre a Igreja, em que há figuras angélicas como o Santo de Assis, e nobres e geniais como a de Gregório, o Grande, que a salvou na sua mais perigosa crise. E toda a minha pena é de não poder eliminar esse livro da minha obra ou, pelo menos, de alterá-lo fundamentalmente, pondo-o de acordo com o meu actual modo de sentir e de julgar..."
Guerra Junqueiro, fiel aos príncipios cristãos, que assume e tão bem canta na sua poesia, vive uma profunda sede de justiça e de fidelidade a si próprio. Canta quando diz:
"Farei da cega luz que me alumia
A luz espiritual do grande dia,
A luz de Deus, a luz do Amor, a luz do Bem,
A luz de glória eterna, a luz da luz, amém!
(Oração à luz)
As afirmações que acabo de fazer não surgem com intuíto apologético; ao contrário, respeitando a autocrítica de Junqueiro, julgo que também alguma «oposição» à Igreja pode ser salutar, no sentido de esta se rever no fundamental, em contínua atitude crítica.
No entanto, parece-me profundamente redutor e de uma extrema injustiça para com Junqueiro, quando alguém o cita apenas nesse período anticlerical, desconhecendo o todo da sua obra, ou escondendo-o prepositadamente, para fazer valer alguns princípios ideológicos, políticos ou culturais.
A sedução do Divino, a Fé, não pode ser algo de impessoal ou de imposto; mas também não pode ser, em nome da verdade, algo recusado de forma gratuita ou banida sem essa procura serena, profunda e sincera.
É aí, longe de qualquer olhar mediador, que Deus estabelece a sedução do homem.
Antero de Quental percebe-o. E, no dealbar da existência, canta-a dessa forma magnífica:
"Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
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Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
(Na Mão de Deus)
(Texto escrito em 1998 - Carlos Alberto Godinho)