sexta-feira, 26 de setembro de 2014


  DIA MUNDIAL DO TURISMO – 2013

ÁGUA: DOM E VALOR!
 

«Visitastes a terra e a resgastes, enchendo-a de fertilidade. As fontes do céu transbordam em água e fazeis brotar o trigo. Assim preparais a terra» (Sl. 65, 10).

 

   Ao celebrarmos o Dia Mundial do Turismo, neste ano de 2013, olhamos para a água, elemento fundamental da criação, como um dom e um valor. Dom que brota do ato criador, como princípio vital (cf. Gn. 1, 9. 20; cf. Sl. 65, 10); e que é oferecido ao homem para seu usufruto, como um valor que cuidadosamente deve administrar (cf. Gn. 1, 26; Sl. 8, 7. 9).

   Consciente da importância da água para a vida humana e toda a sua atividade, o Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes quis tomar, para esta celebração, o tema proposto pela Organização Mundial do Turismo: Turismo e água: proteger o nosso futuro comum, em conformidade, ainda, com a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que, no contexto da «Década Internacional para a Ação (2005 – 2015) – A água fonte de vida», defende que «a água é fundamental para o desenvolvimento sustentável, em particular para a integridade ambiental e a erradicação da pobreza e da fome, é indispensável para a saúde e o bem-estar do homem, e é fundamental para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio»[1].

   No intuito de compreendermos a importância deste elemento da natureza, sua simbologia e necessidade de, entre nós, o preservarmos, detenhamo-nos nas seguintes notas:

   1. As águas, nas chamadas cosmogonias aquáticas, particularmente orientais, simbolizam a «totalidade das virtualidades»; elas são «fons et origo» - fonte e origem; «a matriz de todas as possibilidades de existência»[2]. Precisamente porque simbolizam «a substância primordial de que nascem todas as formas»[3], estando presentes no princípio e no fim de todos os ciclos cósmicos, enquanto realidade germinativa e fonte de vida, em todos os planos da existência.[4]

   A água, um dos «mais importantes pressupostos da vida»[5], assume igualmente na simbologia bíblica o sentido de «felicidade», de «segurança» e de «vida», ainda que simultaneamente, pelas características de elemento que facilmente se esvai, a perceção da «transitoriedade» da própria existência humana.[6] Nesta simbólica bíblica, a água manifesta essencialmente a própria vida divina, que sobre nós se derrama, particularmente quando Deus é apresentado como «fonte de água viva» (Jer. 17, 13); imagem que ganha sentido pleno em Jesus Cristo, que Se afirma a si próprio como fonte dessa água (cf. Jo. 4, 10), capaz de se tornar, para os que n’Ele creem, uma fonte que jorra para a vida eterna (cf. Jo. 4, 14).[7] O texto do Antigo Testamento simbolizava já na água a plenitude do próprio reino de Deus, pois que assim como aquela, por onde passa, renova todas as coisas, também este Reino será definitivo, plenificando toda a criação (cf. Ez. 47, 1. 12). E, para o cristão, de modo particular, a água remete ainda para o dom do batismo, pois por ela fomos purificados, tornando-nos - unida ao dom do Espírito Santo - participantes da condição singular de filhos de Deus (cf. Rm. 6, 4 – 11).[8]

   Ora, quer nas cosmogonias referidas, quer na simbólica bíblica, a água é apresentada numa das suas características fundamentais – fonte de vida. Sem ela não há existência. Na verdade, ela é «fons et origo»[9], o que a torna tão preciosa, quanto essencial. Assim sendo, absolutamente necessária à vida de toda criação e, consequentemente, de todo o género humano. Sabemos, todavia, que a água é um recurso limitado e que, à escala global, nem todos têm igual acesso a este dom fundamental, particularmente quando as transformações climatéricas tendem a estender sobre boa parte do orbe terrestre um manto crescente de desertificação. Daí que se imponha, no que se refere ao acesso à água, o mesmo princípio fundamental, definido pelo Concílio Vaticano II, a propósito do destino universal dos bens: devem servir a todos os homens e povos, de modo que a todos cheguem equitativamente, segundo os princípios da justiça, que não podem separar-se da autêntica caridade (GS. 69). O que pressupõe, à medida que se consciencializa o limite dos recursos disponíveis, «a necessidade de interpretar os ritmos da natureza e de tê-los em conta na programação do desenvolvimento» (SRS. 26), como referia o Papa João Paulo II. Tanto mais que, no que se refere à água, este recurso incide diretamente sobre as condições de vida de cada pessoa e sobre as suas mais elementares capacidades económicas.

   O turismo, neste contexto alargado, deve favorecer o respeito pelo ambiente – a autêntica «preocupação ecológica» (SRS. 26) - no uso mais moderado dos recursos naturais e numa perspetiva de solidariedade com todas as culturas locais.[10]
 

2. A água é um valor singular para toda a atividade turística, direta e indiretamente. O recurso a este elemento natural está presente nas atividades de lazer: na procura das estâncias balneares ou de recreio aquático; no turismo de natureza; e no turismo de saúde, concretamente com as clássicas ou novas modalidades de termalismo e SPA. O consumo dos recursos hídricos aumenta ainda com o número de turistas, seja na restauração ou nos espaços de alojamento. Acrescendo, igualmente, a sua utilização como meio de embelezamento e de arranjo urbanístico, em espaços públicos. Não deixando, ainda, de se considerar a indispensabilidade da água na manutenção e gestão de espaços de recreio e desporto, entre os quais sobressai a prática do golfe. Estas e outras necessidades configuram uma forte utilização dos recursos existentes, nem sempre consciente das suas implicações face aos recursos realmente disponíveis.

   Portugal, felizmente, é um país dotado de uma grande diversidade de recursos hídricos: seja na costa atlântica que o percorre a ocidente e a sul; seja na multiplicidade de rios, ribeiros e riachos que serpenteiam a nossa paisagem natural; nas múltiplas fontes que jorram em espaços naturais; ou nas diversas unidades aquíferas, que permitem a utilização das suas águas em atividades correntes ou em contexto de termalismo e saúde. Portugal dispõe ainda de uma boa quantidade de aquíferos que permitem a captação e comercialização da água, em larga escala, enquanto recurso económico.

   Não obstante, algumas zonas do país, particularmente nos períodos de menor precipitação, sofrem já a carestia deste bem essencial, quer para o consumo doméstico, quer para as atividades económicas do setor primário, com destaque para a agricultura e a pecuária. Isto verifica-se, particularmente, em zonas tendencialmente mais secas, como o Alentejo ou algumas zonas do Nordeste Transmontano. Sabendo-se ainda que, com as alterações climáticas, Portugal sofre, e virá a sofrer no futuro, um processo de diminuição de recursos hídricos, por via do aquecimento global, a que se somam igualmente os dramáticos incêndios, em cada verão, aliados à tendência para a monocultura do pinheiro bravo e do eucalipto - cujo efeito de retirada de água dos solos é bem conhecido - em detrimento de uma reflorestação assente na diversificação das espécies florestais, com recurso especial às espécies endógenas de cada região. Por tudo isto, necessitamos de uma especial atenção à gestão dos recursos hídricos verdadeiramente disponíveis e a uma gestão sustentável que assegure a sua viabilidade futura.


3. Neste Dia Mundial do Turismo, com o enfoque na atenção à água, como meio de proteger o nosso futuro comum[11], algumas atitudes nos são exigidas, seja no uso racional imediato deste bem indispensável, seja numa perspetiva de gestão dos recursos existentes, a fim de se assegurar a sua sustentabilidade futura. Assim, devemos, desde logo e em primeiro lugar, formar as novas gerações para o uso correto da água, consciencializando-as para a sua importância, numa séria e autêntica formação ambiental. Depois, cabe-nos valorizar todos os recursos hídricos existentes, usando-os com moderação e cuidando deles, da sua qualidade e salubridade. Neste sentido, impõe-se-nos um particular cuidado com todas as formas de poluição; com o uso indevido dos cursos de água e seu esbanjamento desnecessário; com o derrame de efluentes de origem industrial, ou mesmo de pequenas explorações agrícolas ou pecuárias, e respetiva contaminação de cursos de água que servem as populações; ou ainda um particular cuidado na conservação de aquíferos que possam servir de autênticos reservatórios para as necessidades futuras.

   De igual modo, o tratamento de esgotos e efluentes - felizmente uma prática mais comum nos vários municípios - permite a reutilização da água, particularmente para irrigação de jardins e espaços de cultivo, ou mesmo para descargas sanitárias. O mesmo se podendo aplicar à utilização das águas pluviais. Na verdade, o princípio tão difundido da reutilização bem se pode aplicar à água, recurso natural de primeira necessidade que devemos cuidar. Nesta perspetiva, ainda, a reutilização é possível, em sistemas de circularidade, quando a água é utilizada em contexto de arranjos urbanístico e de embelezamento de alguns espaços públicos.

   Cada vez mais, hoje, se utilizam dispositivos de controlo do consumo de água, passiveis de serem aplicados em contextos tão diversos como a hotelaria, a restauração e outros espaços de particular serviço à prática do turismo. Estes sistemas têm a vantagem de racionar o consumo de água, sem deixar de servir convenientemente os turistas ou visitantes.

   Especial atenção nos merece o mar, fonte de tantas possibilidades, na diversidade de recursos que coloca ao nosso alcance. Desde logo, a preservação das suas águas e dos seus ecossistemas marinhos deve ser preocupação cimeira, de autoridades e de turistas. Depois, o mar permite-nos o aproveitamento das suas águas, seja nos diversos contextos de recreio e balneares, seja em atividades de saúde, como os centros de talassoterapia, hoje cada vez mais divulgados.

   Particular cuidado nos deve merecer a floresta e as modalidades de reflorestação. A utilização de diversidade de espécies - com especial utilização das endógenas de cada região – é um bem que teremos de salvaguardar: para evitar fenómenos de desertificação e incrementar uma maior diversidade florestal, de que o turismo tanto pode beneficiar. É evidente que na atual gestão da floresta se sobrepõe um interesse económico imediato, com o recurso a manchas contínuas de espécies únicas e de crescimento mais rápido, a uma diversidade que enriqueça os solos, a paisagem, a própria preservação da floresta e, por consequência, o turismo. Portugal é um país verde; e muito terá a beneficiar desta diversidade.

   Sem pretender esgotar princípios e orientações de caracter técnico, que outros conhecerão em maior profundidade, cabe-nos aqui consciencializar para as múltiplas possibilidades ao nosso alcance na gestão dos recursos naturais e, em particular, dos recursos hídricos. O turismo será sempre responsável e beneficiário das medidas que possam ser tomadas no sentido de salvaguardar tais recursos. Da sua boa gestão e sustentabilidade dependerá, igualmente, a sustentabilidade da oferta turística.

   O turismo depende dos recursos hídricos e da sua qualidade. Valorizá-los é um ato de inteligência e de viabilidade futura. Por outro lado, o turismo faculta-nos a oportunidade de cuidar da nossa casa comum, de que depende, e de louvar, como o profeta, ao Deus Criador, que permanentemente nos oferece os Seus múltiplos dons, deixando brotar do íntimo do coração o louvor incessante: «todas as águas…bendizei o Senhor: louvai-O e exaltai-O para sempre» (Dn. 3, 60).

     
Luso, 25 de Setembro de 2013

Pe. Carlos Alberto da Graça Godinho

Diretor da Obra Nacional da Pastoral do Turismo (ONPT)

 



[1] Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes – Mensagem por ocasião do Dia Mundial do Turismo 2013: Turismo e água: proteger o nosso futuro comum. Cidade do Vaticano, 24 de Junho de 2013.
[2] Mircea Eliade – Tratado de História das Religiões. 1ª Ed. Porto: Edições Asa, 1992, p. 243.
[3] Ibidem, p. 243.
[4] Cf. Ibidem, p. 246.
[5] Voc. Água in AA.VV. – Dicionário Bíblico. Porto: Editorial Perpétuo Socorro, 1983, p. 16.
[6] Ibidem, p. 16. Cf. Carlos Alberto da Graça Godinho – Perspetivas para uma Pastoral das Termas. Ferragudo, 2010, p. 2.
[7] Cf. Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes – Mensagem por ocasião do Dia Mundial do Turismo 2013. Op. cit.
[8] Cf. Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes – Turismo e água: proteger o nosso futuro comum, op. cit.
[9] Vide nota nº 2.
[10] Cf. PAPA JOÃO PAULO II – Mensagem do Santo Padre para o Dia Mundial do Turismo 2002: Ecoturismo, chave do desenvolvimento sustentável. Vaticano, 24 de Junho de 2002, nº 3. Cf. Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes – Turismo e água: proteger o nosso futuro comum, op. cit.
[11] Cf. Organização Mundial do Turismo – Turismo e água: proteger o nosso futuro. In Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes – Mensagem por ocasião do Dia Mundial do Turismo 2013, op. cit.