quinta-feira, 6 de abril de 2017

Jejum!


JEJUM 

   A Igreja iniciou, em quarta-feira de cinzas, o tempo da quaresma. O período de preparação para a celebração do maior acontecimento da fé cristã: a celebração do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – a Páscoa da Ressurreição!

   Precisamente no início deste tempo, em quarta-feira de cinzas, Jesus pedia-nos, no Evangelho, para vivermos a vida cristã sem hipocrisia, deixando-nos, todavia, a indicação de três atitudes a privilegiar em tempo de quaresma: a oração, a esmola e o jejum. Curiosamente, remetendo-nos para as três dimensões fundamentais da nossa relação humana: a relação com Deus (a oração), a relação com o próximo (a caridade, simbolizada na esmola) e a relação connosco próprios (o jejum).

   É nesta última atitude – o jejum – que agora nos detemos. A finalidade do jejum não é outra senão o domínio de nós mesmos, a capacidade de moderação nos nossos apetites e desejos, na perspetiva de alcançarmos uma maior liberdade e uma vida com outra densidade e profundidade, humana e espiritual. Tradicionalmente, o jejum sempre foi entendido como a privação de certos alimentos, particularmente de carne, privilegiando-se uma alimentação mais frugal, muitas vezes à base de vegetais e de outros produtos mais simples. Esta orientação foi assumida pela Igreja, durante séculos, e vivida pelos cristãos nas diversas comunidades cristãs, mas, muito particularmente, nas comunidades monásticas ou conventuais. Bastaria recordar o Deserto dos Carmelitas do Bussaco, onde os frades, que já só se alimentavam habitualmente de legumes e de peixe, neste período se impunham uma penitência ainda maior, alimentando-se quase exclusivamente de verduras.[1]

   A verdade é que esta prática do jejum parece ultrapassada, ficando-nos apenas como memória histórica! Todavia, não é assim! Nunca, como nos dias de hoje, o jejum esteve tão em voga, como meio de alcançar alguns objetivos pessoais. É certo que se abandonou o jejum por razões espirituais, mas este foi sobrevalorizado por razões corporais. São hoje muitas as pessoas que se impõem duros regimes alimentares para alcançar ou manter o corpo definido, segundo o modelo socialmente idealizado. Sejam figuras femininas ou masculinas, são muitos os que se forçam a múltiplas privações para manter os atuais padrões de beleza, segundo a conceção social. De facto, o jejum continua em voga; mudaram-se, isso sim, as suas motivações. Passou-se da preocupação espiritual, para a preocupação física. Muitas vezes quase como uma «ditadura» do socialmente aprovado, de que muitos não querem abdicar.

   É certo que o jejum continua a ser hoje, como ontem, uma fonte de equilíbrio físico, muitas vezes necessário. É sabido que alguns dias de jejum permitem ao organismo reequilibrar-se, em termos de saúde e de bem-estar, como por exemplo o reequilíbrio do sistema imunitário, não obstante os nutricionistas aconselhem preferencialmente uma alimentação permanentemente equilibrada.

   Tão pouco para os cristãos, em tempo de quaresma, o jejum se poderá resumir à opção pelo consumo de carne ou de peixe, tantas vezes bem mais apetecível e dispendioso. O verdadeiro jejum consiste sempre na moderação de si mesmo, podendo passar pela privação da comida ou da bebida, mas igualmente por muitas outras atitude, porventura bem mais necessárias. O Papa Francisco deixa-nos mesmo algumas sugestões de jejum, neste tempo de quaresma, que aqui partilho convosco: «Jejum das palavras negativas, dizendo palavras bondosas; jejum de descontentamento, enchendo-se de gratidão; jejum de raiva, enchendo-se de mansidão e paciência; jejum de pessimismo, enchendo-se de esperança e otimismo». Só assim, com estas e outras atitudes, de autêntica transformação humana, podemos alcançar o que Deus dizia através do profeta Joel, ainda em quarta-feira de cinzas: «Rasgai os vossos corações e não os vossos vestidos» (Jl. 2, 13), num convite claro à sinceridade da transformação pessoal.

    Se o jejum é um caminho de perfeição física, pode continuar a sê-lo também de perfeição espiritual. Mas agora com esta visão mais alargada, para que o homem se supere e alcance níveis mais profundos de autêntica humanidade.


Pampilhosa, 09 de Março de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(38ª Reflexão)

 




[1] Cf. SANTOS, J. J. Carvalhão – Novo Guia Histórico do Buçaco. Coimbra: Edições Minerva, 2002, p. 21.