JEJUM
A Igreja iniciou, em
quarta-feira de cinzas, o tempo da quaresma. O período de preparação para a
celebração do maior acontecimento da fé cristã: a celebração do mistério da
paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – a Páscoa da Ressurreição!
Precisamente no início deste tempo, em quarta-feira de cinzas, Jesus
pedia-nos, no Evangelho, para vivermos a vida cristã sem hipocrisia,
deixando-nos, todavia, a indicação de três atitudes a privilegiar em tempo de
quaresma: a oração, a esmola e o jejum. Curiosamente, remetendo-nos para as
três dimensões fundamentais da nossa relação humana: a relação com Deus (a
oração), a relação com o próximo (a caridade, simbolizada na esmola) e a
relação connosco próprios (o jejum).
É
nesta última atitude – o jejum – que agora nos detemos. A finalidade do jejum não
é outra senão o domínio de nós mesmos, a capacidade de moderação nos nossos
apetites e desejos, na perspetiva de alcançarmos uma maior liberdade e uma vida
com outra densidade e profundidade, humana e espiritual. Tradicionalmente, o
jejum sempre foi entendido como a privação de certos alimentos, particularmente
de carne, privilegiando-se uma alimentação mais frugal, muitas vezes à base de
vegetais e de outros produtos mais simples. Esta orientação foi assumida pela
Igreja, durante séculos, e vivida pelos cristãos nas diversas comunidades
cristãs, mas, muito particularmente, nas comunidades monásticas ou conventuais.
Bastaria recordar o Deserto dos Carmelitas do Bussaco, onde os frades, que já
só se alimentavam habitualmente de legumes e de peixe, neste período se
impunham uma penitência ainda maior, alimentando-se quase exclusivamente de
verduras.[1]
A
verdade é que esta prática do jejum parece ultrapassada, ficando-nos apenas
como memória histórica! Todavia, não é assim! Nunca, como nos dias de hoje, o
jejum esteve tão em voga, como meio de alcançar alguns objetivos pessoais. É
certo que se abandonou o jejum por razões espirituais, mas este foi
sobrevalorizado por razões corporais. São hoje muitas as pessoas que se impõem
duros regimes alimentares para alcançar ou manter o corpo definido, segundo o
modelo socialmente idealizado. Sejam figuras femininas ou masculinas, são
muitos os que se forçam a múltiplas privações para manter os atuais padrões de
beleza, segundo a conceção social. De facto, o jejum continua em voga;
mudaram-se, isso sim, as suas motivações. Passou-se da preocupação espiritual,
para a preocupação física. Muitas vezes quase como uma «ditadura» do
socialmente aprovado, de que muitos não querem abdicar.
É
certo que o jejum continua a ser hoje, como ontem, uma fonte de equilíbrio
físico, muitas vezes necessário. É sabido que alguns dias de jejum permitem ao
organismo reequilibrar-se, em termos de saúde e de bem-estar, como por exemplo
o reequilíbrio do sistema imunitário, não obstante os nutricionistas aconselhem
preferencialmente uma alimentação permanentemente equilibrada.
Tão
pouco para os cristãos, em tempo de quaresma, o jejum se poderá resumir à opção
pelo consumo de carne ou de peixe, tantas vezes bem mais apetecível e
dispendioso. O verdadeiro jejum consiste sempre na moderação de si mesmo,
podendo passar pela privação da comida ou da bebida, mas igualmente por muitas
outras atitude, porventura bem mais necessárias. O Papa Francisco deixa-nos
mesmo algumas sugestões de jejum, neste tempo de quaresma, que aqui partilho
convosco: «Jejum das palavras negativas, dizendo palavras bondosas; jejum de
descontentamento, enchendo-se de gratidão; jejum de raiva, enchendo-se de
mansidão e paciência; jejum de pessimismo, enchendo-se de esperança e
otimismo». Só assim, com estas e outras atitudes, de autêntica transformação
humana, podemos alcançar o que Deus dizia através do profeta Joel, ainda em
quarta-feira de cinzas: «Rasgai os vossos corações e não os vossos vestidos»
(Jl. 2, 13), num convite claro à sinceridade da transformação pessoal.
Se
o jejum é um caminho de perfeição física, pode continuar a sê-lo também de
perfeição espiritual. Mas agora com esta visão mais alargada, para que o homem
se supere e alcance níveis mais profundos de autêntica humanidade.
Pampilhosa, 09 de Março de 2017
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(38ª Reflexão)
[1]
Cf. SANTOS, J. J. Carvalhão – Novo Guia
Histórico do Buçaco. Coimbra: Edições Minerva, 2002, p. 21.