Caíu-me de novo nas mãos, um pouco por acaso, o célebre Sermão de Santo António aos Peixes, do Pe. António Vieira, aquele de quem Fernando Pessoa disse que é o «Imperador da Língua Portuguesa»! Mas não é pelo estilo de escrita que escrevo agora, mas sim pelo seu conteúdo. Numa denúncia sempre actual, o Pe. António Vieira, após o elogio dos peixes e da sua virtude, denuncia as suas fraquezas, os defeitos que pode registar entre estes seres maritimos. Numa linguagem metafórica excelente, o Pe. António Vieira deixa-nos aqui um confronto imenso com a nossa humanidade distorcida! Mas fiquemos com um excerto do seu sermão:
A primeira coisa que me desidifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt veluti pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros». Tão alheia coisa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. (...)
Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo."
Pe. António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes
Este sermão, pregado na cidade de São Luís de Maranhão, no Brasil, em 1654, três dias antes de o Pe. António Vieira embarcar ocultamente para o Reino, não vale apenas pelo seu estilo. A ele se une a força do seu conteúdo, tornando-o imorredoiro na actualidade das suas afirmações.