1. O estudo do cabido da Sé de Coimbra, na segunda metade do séc. XVIII, permite-me perceber o exercício do poder no interior desta instituição eclesiástica, num período controverso, porque marcado pela busca de «honras» e «benefícios económicos», à custa de um certo desfalecimento da genuína vivência espiritual que, na conceção hodierna, se pretenderia marcasse aquela época; para além da perceção da relação com os demais poderes eclesiais, que pontificavam nesse período temporal.
O cabido, no período indicado, é fruto do seu tempo e dos contornos eclesiais, políticos, sociais, culturais e económicos, que lhe dão a sua fisionomia própria, enquanto instituição simultaneamente eclesial e senhorial. Todavia, o exercício do poder no seio da instituição capitular era profundamente regulado pelos seus Estatutos, que estabeleciam, com toda a precisão, as normas de precedências e de promoção nos diversos cargos, bem como o exercício dos diversos ofícios a exercer pelos vários capitulares. Aliás, toda a vida do cabido passava pelas suas sessões capitulares (denominadas precisamente de Cabido), em que se votavam todas as matérias, no que respeitava ao temporal e ao espiritual. Se para algumas delas era suficiente a maioria simples da votação por favas (o modo próprio de votar, com recurso a favas brancas e pretas); outras havia que exigiam uma maioria clara, de duas partes em três, ou mesmo a votação unânime, denominada, com frequência, nemine discrepante (sem qualquer discrepância). Por outro lado, ainda, a relação com os demais poderes estava igualmente regulada, não obstante os conflitos que emergiram na relação entre instituições de natureza similar. Aliás, quase todas as instituições, da época, tinham o seu regimento próprio, ou seus Estatutos, sobrando um poder mais pessoal ao detentor da mitra, no exercício da missão singular de que estava investido.
É certo que ao cabido não ascendia qualquer um. Sendo uma instituição senhorial, a ela tinham acesso os filhos segundos dos nobres, ou aqueles que passavam por um processo de nobilitação, pois os seus familiares haviam-se afirmado no alto comércio, no percurso universitário, ou simplesmente no exercício da magistratura, com um forte destaque para a burguesia que, neste período, procurava viver à maneira da nobreza. Mas a estrutura social do tempo enquadrava estas instituições eclesiásticas, com forte influência na sociedade civil, de que eram parte, pois não estamos ainda na divisão entre o mundo secular e o mundo eclesiástico, mas sim num corpo único, em que ambos os componentes sociais se interpenetram e compreendem.
Mas, repita-se, entrando na instituição capitular, todos se sujeitavam aos Estatutos, sabendo que eles delimitavam a natureza das funções de cada um e suas respetivas «carreiras» internas, até ao mais ínfimo pormenor. Era, efetivamente, um poder regulado. Na vivência interna e na relação interinstitucional, no campo da Igreja.
2. Analisar esta instituição, permite-me comparar o exercício de um dos poderes da época moderna com os poderes atuais, no seio da Igreja.
Se é certo que a «ascensão» eclesiástica resulta hoje, eminentemente, dos serviços prestados à comunidade eclesial, a verdade é que não estamos isentos de uma desregulação do exercício do poder no seio da Igreja, porque mais concentrado e menos regulamentado; o que tem causado, não raro, alguns transtornos ao corpo eclesial, quer a um nível superior, quer mesmo em níveis mais próximos de cada um de nós. Em última instância, superada a rigidez daqueles Regimentos, Estatutos, ou demais corpos normativos, o poder é menos partilhado e tende a acentuar a vontade unilateral do primeiro responsável eclesial (o Papa, para a Igreja Universal; ou o Bispo, para a Igreja Local), ou o daqueles que são os seus mais diretos colaboradores. E se esta vontade pessoal, pelo carisma próprio do episcopado, poderia assumir-se como uma garantia do equilíbrio eclesial, não está imune às influências, simpatias, sensibilidades pessoais, ou simplesmente ao desejo de promoção pessoal, expresso por aqueles que sabem aproximar-se ou ganhar as graças dos seus legítimos superiores. Corremos o risco, também hoje, e não menos do que ontem, de nos confrontarmos com um poder pessoal, unilateral, menos partilhado, que se assume como ponto único de equilíbrio entre as diversas instituições eclesiais.
Ora, precisamente este exercício do poder, no âmbito da Igreja, choca a sensibilidade dos nossos contemporâneos, precisamente por ser concentrado e, porventura, permeável a algumas arbitrariedades. Por muito que critiquemos o poder civil e a sua organização, ou mesmo a capacidade, no seu seio, de definição de percursos pessoais, pela permeabilidade que este poder comporta, a verdade é que o poder civil se afirma como mais transparente na sua organização. Isto porque compreende, habitualmente, o poder partilhado, ou seja, democrático.
3. Em tempo de oração pela santificação dos sacerdotes, agora que se aproxima o dia do Sagrado Coração de Jesus – instituído pelo Papa Bento XVI como dia de oração pela santificação dos ministros ordenados – talvez devamos, todos nós, atender muito mais ao modo como o poder se exerce na comunidade eclesial (poder que na Igreja tem de ser serviço). Isto porque – infelizmente – também nós não estamos isentos das fragilidades humanas, que buscam no poder a assunção de si próprios, encobrindo, quantas vezes, nos seus serviços prestados algumas apetências pessoais, ou apetências de pequenos grupos.
Se nos centramos, hoje, noutras preocupações de purificação pessoal e comunitária, em sintonia com toda a Igreja, também este campo da vivência eclesial deverá merecer o nosso especial cuidado, para não desvirtuarmos o Evangelho.
Conclusão: não pretendo, de modo algum, nestas singelas palavras, fazer qualquer crítica negativa à Igreja; procuro, isso sim, uma crítica positiva, no intuito de trilharmos continuamente os caminhos de uma sincera purificação conjunta. Tão pouco se devem atribuir a estas palavras despretensiosas qualquer intenção pessoal, pois que, muito sinceramente, não se fundam em qualquer questão de foro particular, mas na leitura ampla da realidade que vou procurando fazer. Julguei-as simplesmente apropriadas, pois partindo do estudo do passado e consciente do nosso presente, sinto que o futuro deve ser, cada vez mais, de profunda transparência, também neste âmbito tão sensível do exercício do poder na Igreja, para que se supere qualquer desejo de brilho pessoal e se deixe brilhar a única luz que se pretende mostrar – a luz do Senhor Ressuscitado.
O cabido, no período indicado, é fruto do seu tempo e dos contornos eclesiais, políticos, sociais, culturais e económicos, que lhe dão a sua fisionomia própria, enquanto instituição simultaneamente eclesial e senhorial. Todavia, o exercício do poder no seio da instituição capitular era profundamente regulado pelos seus Estatutos, que estabeleciam, com toda a precisão, as normas de precedências e de promoção nos diversos cargos, bem como o exercício dos diversos ofícios a exercer pelos vários capitulares. Aliás, toda a vida do cabido passava pelas suas sessões capitulares (denominadas precisamente de Cabido), em que se votavam todas as matérias, no que respeitava ao temporal e ao espiritual. Se para algumas delas era suficiente a maioria simples da votação por favas (o modo próprio de votar, com recurso a favas brancas e pretas); outras havia que exigiam uma maioria clara, de duas partes em três, ou mesmo a votação unânime, denominada, com frequência, nemine discrepante (sem qualquer discrepância). Por outro lado, ainda, a relação com os demais poderes estava igualmente regulada, não obstante os conflitos que emergiram na relação entre instituições de natureza similar. Aliás, quase todas as instituições, da época, tinham o seu regimento próprio, ou seus Estatutos, sobrando um poder mais pessoal ao detentor da mitra, no exercício da missão singular de que estava investido.
É certo que ao cabido não ascendia qualquer um. Sendo uma instituição senhorial, a ela tinham acesso os filhos segundos dos nobres, ou aqueles que passavam por um processo de nobilitação, pois os seus familiares haviam-se afirmado no alto comércio, no percurso universitário, ou simplesmente no exercício da magistratura, com um forte destaque para a burguesia que, neste período, procurava viver à maneira da nobreza. Mas a estrutura social do tempo enquadrava estas instituições eclesiásticas, com forte influência na sociedade civil, de que eram parte, pois não estamos ainda na divisão entre o mundo secular e o mundo eclesiástico, mas sim num corpo único, em que ambos os componentes sociais se interpenetram e compreendem.
Mas, repita-se, entrando na instituição capitular, todos se sujeitavam aos Estatutos, sabendo que eles delimitavam a natureza das funções de cada um e suas respetivas «carreiras» internas, até ao mais ínfimo pormenor. Era, efetivamente, um poder regulado. Na vivência interna e na relação interinstitucional, no campo da Igreja.
2. Analisar esta instituição, permite-me comparar o exercício de um dos poderes da época moderna com os poderes atuais, no seio da Igreja.
Se é certo que a «ascensão» eclesiástica resulta hoje, eminentemente, dos serviços prestados à comunidade eclesial, a verdade é que não estamos isentos de uma desregulação do exercício do poder no seio da Igreja, porque mais concentrado e menos regulamentado; o que tem causado, não raro, alguns transtornos ao corpo eclesial, quer a um nível superior, quer mesmo em níveis mais próximos de cada um de nós. Em última instância, superada a rigidez daqueles Regimentos, Estatutos, ou demais corpos normativos, o poder é menos partilhado e tende a acentuar a vontade unilateral do primeiro responsável eclesial (o Papa, para a Igreja Universal; ou o Bispo, para a Igreja Local), ou o daqueles que são os seus mais diretos colaboradores. E se esta vontade pessoal, pelo carisma próprio do episcopado, poderia assumir-se como uma garantia do equilíbrio eclesial, não está imune às influências, simpatias, sensibilidades pessoais, ou simplesmente ao desejo de promoção pessoal, expresso por aqueles que sabem aproximar-se ou ganhar as graças dos seus legítimos superiores. Corremos o risco, também hoje, e não menos do que ontem, de nos confrontarmos com um poder pessoal, unilateral, menos partilhado, que se assume como ponto único de equilíbrio entre as diversas instituições eclesiais.
Ora, precisamente este exercício do poder, no âmbito da Igreja, choca a sensibilidade dos nossos contemporâneos, precisamente por ser concentrado e, porventura, permeável a algumas arbitrariedades. Por muito que critiquemos o poder civil e a sua organização, ou mesmo a capacidade, no seu seio, de definição de percursos pessoais, pela permeabilidade que este poder comporta, a verdade é que o poder civil se afirma como mais transparente na sua organização. Isto porque compreende, habitualmente, o poder partilhado, ou seja, democrático.
3. Em tempo de oração pela santificação dos sacerdotes, agora que se aproxima o dia do Sagrado Coração de Jesus – instituído pelo Papa Bento XVI como dia de oração pela santificação dos ministros ordenados – talvez devamos, todos nós, atender muito mais ao modo como o poder se exerce na comunidade eclesial (poder que na Igreja tem de ser serviço). Isto porque – infelizmente – também nós não estamos isentos das fragilidades humanas, que buscam no poder a assunção de si próprios, encobrindo, quantas vezes, nos seus serviços prestados algumas apetências pessoais, ou apetências de pequenos grupos.
Se nos centramos, hoje, noutras preocupações de purificação pessoal e comunitária, em sintonia com toda a Igreja, também este campo da vivência eclesial deverá merecer o nosso especial cuidado, para não desvirtuarmos o Evangelho.
Conclusão: não pretendo, de modo algum, nestas singelas palavras, fazer qualquer crítica negativa à Igreja; procuro, isso sim, uma crítica positiva, no intuito de trilharmos continuamente os caminhos de uma sincera purificação conjunta. Tão pouco se devem atribuir a estas palavras despretensiosas qualquer intenção pessoal, pois que, muito sinceramente, não se fundam em qualquer questão de foro particular, mas na leitura ampla da realidade que vou procurando fazer. Julguei-as simplesmente apropriadas, pois partindo do estudo do passado e consciente do nosso presente, sinto que o futuro deve ser, cada vez mais, de profunda transparência, também neste âmbito tão sensível do exercício do poder na Igreja, para que se supere qualquer desejo de brilho pessoal e se deixe brilhar a única luz que se pretende mostrar – a luz do Senhor Ressuscitado.