Pesem embora razões válidas para a defesa da dignidade das celebrações litúrgicas, afrontando os exageros que têm sido cometidos, continuo a afirmar que o regresso à Missa de São Pio V não pode ser a resposta a dar pela Igreja. A dignificação da Liturgia tem de fazer-se na linha do Vaticano II, até porque existe uma unidade intrinseca entre a Constituição Sacrossantum Concilium e a Lumen Gentium. Há aqui, reafirmo-o, uma questão de Eclesiologia.
E já agora, de pastoral: numa diocese como a nossa - Coimbra -, onde faltam os padres e recorremos cada vez mais aos leigos para celebrações da Palavra, fará sentido recear o protagonismo que estes têm assumido nas celebrações litúrgicas? Pelo amor de Deus, parece que falamos duas linguagens ao mesmo tempo.
Preocupa-me, de sobremaneira, é o facto de estas opções assentarem na autoridade sinodal. Mas, já agora: quantos Bispos se revêm nesta orientação? Serão em maioria, capaz de justificar estas opções? Duvido. Ou, pelo menos, quero duvidar!
Vejam o artigo que recolhi da Agência Ecclesia:
O Motu Proprio de Bento XVI sobre a Liturgia Romana anterior à reforma de 1970, "Summorum Pontificum", que entra em vigor esta Sexta-feira não pode deixar de estar ligado a um ciclo de intervenções pontifícias e do Vaticano a respeito da questão dos "abusos litúrgicos". O próprio Papa escreve, na carta aos Bispos de todo o mundo, que em muitos lugares, a "criatividade" levou frequentemente "a deformações da Liturgia no limite do suportável". Este ciclo iniciou-se no tempo de João Paulo II, com a publicação da encíclica "Ecclesia de Eucharistia" (2003), cujo capítulo V é dedicado ao "decoro da celebração eucarística" e da Carta Apostólica "Mane Nobiscum Domine" (2004). Em 2004, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos publicou a Instrução "Redemptionis Sacramentum" (O Sacramento da Redenção), "Sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia". Entre os abusos que a Santa Sé pretendia evitar encontravam-se o excesso de protagonismo dos leigos durante as celebrações, a partilha da comunhão com não-católicos, a substituição das leituras bíblicas na Missa por outros textos, o hábito de os sacerdotes partirem a hóstia no momento da consagração, a exposição do Santíssimo em condições inadequadas ou a introdução de elementos não-cristãos na Liturgia Católica, entre outros. "Não se podem deixar passar em silêncio os abusos, da máxima gravidade, contra a natureza da Liturgia e dos Sacramentos, bem como contra a tradição e a autoridade da Igreja que subsistem em diversos âmbitos eclesiais nos nossos dias e comprometem a celebração litúrgica" é a tese central do documento.
Sínodo
O debate sobre os abusos litúrgicos no Sínodo dos Bispos de 2005 constituiu a terceira parte deste processo. A violação das normas litúrgicas, praticadas por sacerdotes ou leigos, fez parte, sistematicamente, do debate dos padres sinodais. Alguns Bispos intervieram para protestar contra homilias longas, contra a distribuição da comunhão na mão dos fiéis e contra a presença de muitos concelebrantes para uma única liturgia. Houve queixas também sobre a realização de missas sem o povo de Deus, e sobre a falta de padres em paróquias com um grande número de fiéis. Algumas práticas pré-conciliares seriam recebidas de volta com agrado, de acordo com alguns padres sinodais: um Bispo da Bielorússia pediu que o sacrário voltasse a ter o "lugar central" nas igrejas e um prelado do Cazaquistão gostaria que "a Santa Sé estabelecesse uma norma universal segundo a qual o modo oficial de se receber a Comunhão fosse na boca e de joelhos; a comunhão com a mão deveria estar reservada ao clero". Para estes e outros participantes no Sínodo, as "inovações litúrgicas" no mundo ocidental obscureceram de certo modo o aspecto da centralidade e o carácter sagrado da Eucaristia. Bento XVI recolheu todas estas preocuapações na Exortação Apostólica Pós-Sinodal "Sacramentum Caritatis" (O Sacramento da Caridade), de 2007, onde põe em evidência também a bondade da reforma litúrgica promovida pelo Concilio Vaticano II. Algumas dificuldades e abusos "não podem ofuscar a excelência e a validade da renovação litúrgica que contém riquezas ainda não plenamente exploradas", escreveu. Bento XVI defende que "a simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas".
Papa fiel a Ratzinger
A decisão de facilitar a celebração no Rito de São Pio V já era algo que o Papa defendia enquanto Cardeal. A 5 de Setembro 2003, numa entrevista concedida ao Canal Católico EWTN, Joseph Ratzinger deixava claro que a "antiga Liturgia nunca foi proibida". O então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé mostrava-se agastado com a questão dos "abusos" a que se assistiam na Liturgia. Nessa mesma entrevista, não escondia a sua paixão pelo latim, indicando que a presença desta língua "ajudaria a dar uma dimensão universal" às celebrações.O uso das línguas nacionais foi classificado como "uma solução", ressaltando que "um pouco de latim poderia ajudar a ter a experiência de universalidade". Na sua única Exortação Apostólica até ao momento, o Papa valoriza a celebração em latim e o canto gregoriano. Para isso, recomenda a formação necessária aos sacerdotes e também aos leigos.Joseph Ratzinger sempre ligou a crise eclesial ao "esboroamento da liturgia", concebida "etsi Deus não daretur": como se nela não importasse mais se Deus existe. Por isso, já enquanto Cardeal, defendia um novo movimento litúrgico, que ressuscitasse a "verdadeira herança" do Concílio Vaticano II.