sábado, 4 de agosto de 2018


PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA!...

   Completa-se, no próximo domingo, um ano sobre os terríveis incêndios que assolaram os concelhos de Pedrogão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos. Um drama terrível, com as consequências humanas e patrimoniais que todos pudemos constatar.

   Um ano volvido, importa fazer memória! Exatamente para não esquecermos! Com o intuito de reviver o flagelo daqueles dias? Certamente que não! Ressuscitando a angústia e a dor que perpassaram as vidas de tantos irmãos nossos naquelas horas aflitas? Certamente que também não! Embora conscientes de que existem ainda muitas dores não saradas, vidas resignadas à sua sorte, na memória viva da perda de familiares ou amigos, ou na constatação prática de um património perdido, dificilmente recuperável ou que efetivamente pereceu para sempre. Sabemos que existem pessoas, nestes concelhos, que se reerguem com dificuldade, bem à imagem daquele pinhal que se recupera no fluir do tempo e que é um pálido símbolo destas vidas em recomposição.

   Jamais podemos esquecer as vidas humanas perdidas naquele incêndio! Adultos, jovens, crianças, idosos… Quantos sonhos, projetos e perspetivas de vida se desfizeram em cinza, com aquelas vidas perdidas?!... Fazer memória destes irmãos que partiram é um dever nosso!

   Mas fazer memória, também, dos múltiplos bens patrimoniais perdidos – privados e públicos. Se é certo que nada se compara à perda de uma habitação ou dos bens de sustento, que muitos viram inesperadamente desfeitos no flagelo das chamas, sem equiparação em termos de perdas; também é verdade que todos nós fomos desapossados de um imenso património verde, que assegura o equilíbrio da nossa vivência comum e distingue o país que somos, na sua beleza paisagística. Realidade ainda mais agravada nos incêndios de Outubro. Porventura um flagelo que o tempo poderá refletir nas nossas vidas, à medida que o futuro se fizer presente.

   Mas, volvido um ano, é tempo de fazer memória para um renovado empenho na reconstrução do que o fogo fez perecer. Se as vidas humanas não se podem recuperar para a nossa história comum, lembramo-las, em atitude humana ou de fé, nessa outra dimensão da existência, no coração ou na eternidade que, em qualquer dos casos, é sempre motivo de esperança. Distinta, mas motivo de esperança!

   Urge, para que a memória seja ativa, recuperar o que necessita de recuperação, para assegurar uma vida digna a quem ficou sem recursos, e rever as nossas formas de agir, no sentido de assegurar um futuro mais seguro, sereno e tranquilo diante destes fenómenos que, com maior ou menor gravidade, tendem a assolar o nosso território. Neste sentido, a melhor forma de fazer memória será, por certo, persistir na mobilização solidária e fraterna, partilhando ainda com quem necessita da nossa generosidade e atenção. E tenhamos presente que ainda existem algumas carências a necessitar da nossa ajuda. Corremos o risco, na volatilidade do tempo e na hodierna volatilidade da informação, de rapidamente passarmos a outras preocupações, sem nos determos mais naquilo que a todos mobilizou num passado recente. O presente carece ainda de alguma disponibilidade para correspondermos, todos juntos, às necessidades destes nossos irmãos.

   Mas fazemos igualmente memória para assumir, de vez, as medidas públicas e privadas que assegurem uma nova gestão da floresta, na sua requalificação e reorganização. Estas medidas são acatadas às autoridades públicas, mas são responsabilidade igual das entidades particulares, mormente dos proprietários florestais. Temo que, neste aspeto, não tenhamos aprendido a lição. Não basta que as entidades públicas decretem medidas de limpeza e de resguardo das habitações. É necessária outra disponibilidade e determinação, da parte dos particulares, para se assumir, em conjunto, uma nova gestão da floresta, assumindo as disposições legais já definidas, seja no que toca à continuidade ou descontinuidade de espécies florestais, seja no que se refere à necessidade de aceiros, seja nas demais medidas que urge implementar. E, neste aspeto, pelo que me é dado ver, estamos a falhar!

   Fazer memória para que não se esqueçam os que partiram e os que carecem da nossa presença solidária. Mas fazer igualmente memória para reconstruirmos um território mais seguro, mais ecológico e mais aprazível.

Pampilhosa, 14 de Junho de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(92ª Reflexão)

CRIANÇAS

   Celebrámos, no primeiro dia deste mês de Junho, o Dia Mundial da Criança. Esta celebração varia de país para país, sendo que numa boa parte dos países lusófonos, com exceção do Brasil, este dia se assinala no início do mês de Junho. Contudo, a Organização das Nações Unidas definiu o dia 20 de Novembro como o Dia Internacional dos Direitos das Crianças, precisamente por se assinalar, nessa data, a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada a 20 de Novembro de 1959. Data a que acresceria igualmente a aprovação da Convenção sobre o Direito das Crianças, assinada a 20 de Novembro de 1989.

   São múltiplos os objetivos da Declaração Universal dos Direitos da Criança, quase todos centrados nos direitos à vida, à liberdade, à proteção, à igualdade, a uma identidade, à assistência e à educação. Certamente numa consciência mais viva dos direitos e deveres para com as crianças, que as sociedades só assumiram no decorrer do século XX.

   Verdade seja dita que teríamos aqui um campo imenso de reflexão, se considerássemos, num mundo globalizado, a realidade das crianças nos vários pontos do nosso globo. Quantas situações tão díspares? E a quantas crianças não é ainda assegurado o respeito pelos seus direitos, em parte ou na totalidade? Sim porque há crianças a quem falta tudo e que parecem estar excluídas destes Direitos Universais. Num mundo que é cada vez mais familiar, necessitamos de reafirmar, também em relação às crianças, a «globalização da solidariedade», defendida pelo Papa João Paulo II.

   Mas, de todos os direitos definidos, chamava-me a atenção o princípio 6º da referida Declaração, que inicia assim: «A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade. Na medida do possível, deverá crescer com os cuidados e sob a responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente de afeto e segurança moral e material»[1].

   Ora, esta salvaguarda do amor e compreensão orienta-se para o harmonioso desenvolvimento da personalidade, como sua condição indispensável. Sabendo que a segurança material visa assegurar às crianças as condições básicas de vida. Corremos o risco, numa sociedade materialista e com profundas fissuras na comunidade familiar, de inverter estes valores, substituindo pelas condições materiais, o autêntico amor que é devido a cada criança. Isto é, quando faltam as condições, o tempo, ou a presença junto da criança, substitui-se, não raro, pelas dádivas materiais o que se devia dar numa autêntica dádiva pessoal. E as crianças percebem isso!

   Recuando algumas décadas, muitos de nós reconhecemos como nos foram asseguradas as condições básicas de vida e de educação, às vezes à custa dum grande esforço dos nossos pais. Mas o amor, o autêntico afeto, e a partilha da vida familiar foram o lastro seguro para o crescimento harmonioso, preparando-nos para a vida adulta. Hoje, com a pressão do trabalho; com a escassez de tempo disponível para convivência familiar; com ausência persistente dos pais (valham-nos aí os avós!), por razões laborais; com as ruturas familiares que privam as crianças de um dos seus progenitores; entre tantos outros fatores da vida hodierna; corremos o risco de falhar este objetivo essencial. Que necessita, na hora presente, de cuidados redobrados.

   Já para não falar de múltiplas situações extremas, em que as crianças são sujeitas às tensões entre os pais, sobretudo na sequência da separação destes, sendo as crianças sujeitas a alguma chantagem emocional e permitindo-lhe que cresçam manipulando sentimentos. Por certo, a pior forma de ajudar uma criança a crescer.

   Quando, em sociedade, se definem hoje padrões de vivência material, a que todos os pais querem corresponder, para que os filhos não se sintam inferiores; há um valor primordial que permanece em cada tempo – o amor autêntico! Que se faz de presença, de expressão de carinho, de diálogo, de acompanhamento, de autêntica dádiva de si. Ser pai e ser mãe é uma dádiva imensa! Sabendo que, de entre todos os valores, a vivência do amor será sempre aquele que melhor prepara os seus filhos – para viverem uma vida feliz e para se realizarem na vivência adulta, em sociedade, mediante o «pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade».

Pampilhosa, 07 de Junho de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(91ª Reflexão)



[1] Declaração Universal dos Direitos da Criança. Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, nº 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959. Princípio 6º. Disponível em: http://www.dge.mec.pt
 

ABRAÇO

   O meu amigo Martim é um menino de Luso que gosta de afirmar que é o «homem dos abraços». Em diversas situações, por vezes menos esperadas, ele jaz jus à sua afirmação e expressa o seu afeto com uma descontração e naturalidade que é comovedora. É assim comigo e com todos aqueles com quem convive. Alia à sua natural bonomia a vivência autêntica dos afetos, expressão bem visível da amizade que sabe construir.

   Em cada domingo, após a celebração da Eucaristia na Pampilhosa, sei que, entre as pessoas que possa ter de atender, conto sempre com a presença do Pedro, que vai expressamente à sacristia para me dar o seu longo e terno abraço. O Pedro é um menino que tem síndrome de Down e que, talvez por isso, é especialmente afetivo.

   Duas crianças, duas realidades distintas, o mesmo afeto. Sim, um afeto autêntico, como é próprio da autenticidade das crianças, capaz de nos fazer saborear o que a vida tem de mais belo e tocante.

   Vem isto a propósito do dia dos abraços, celebrado esta semana, em que muitas pessoas fizeram questão de enviar abraços especiais aos seus amigos, nas redes sociais. Diga-se, com verdade, que também eu, pela minha natureza, com facilidade envio abraços através desta tecnologia de comunicação. É em mim algo de natural! É, sem dúvida, um meio eficaz de fazermos chegar o nosso afeto àqueles que nos são queridos, sejam eles mais ou menos próximos. Mas não o sobrevalorizei neste dia. É que não me agrada particularmente a existência de um dia dos abraços. Bem sei que os dias mundiais têm como função sublinhar a importância dos temas que os preenchem e de os incrementar. Mas o dia dos abraços tem de ser cada dia. E a vontade de abraçar tem de estar em consonância com as situações concretas que vivemos a cada momento. Enviar abraços especiais porque alguém determina superiormente que aquele é o dia, sabe-me a exterioridade massificada, quando o abraço é um dos gestos mais genuínos e autênticos que podemos viver. Mas sem juízo, obviamente, de quem vive estes dias com alegria e numa sincera atitude de partilha. Por outro lado, as redes sociais, que tanto facilitam a nossa comunicação, podem virtualizar as nossas relações. Isto é, podem facilitar no mundo virtual aquilo que nos recusamos a viver na realidade do nosso dia-a-dia. Ora, qualquer forma de comunicação à distância ordena-se à comunicação na proximidade e na presença. Assim, cada abraço virtual tem de estar efetivamente aberto à sua expressão real; senão será um engano.

   O abraço é um dos mais profundos gestos de carinho. Nele expressamos a nossa afetividade, a nossa amizade sincera, o nosso conforto, a proximidade, a disponibilidade para o outro, a comunhão. Nele somos capazes de expressar aquilo que as nossas palavras não conseguem dizer. Como referia Cazuza, «o abraço é o encontro de dois corações»[1]. E, na afirmação de José Luís Nunes «o abraço é sempre um céu»[2].

   Necessitamos cada vez mais de abraços. De abraços reais, ternos, amigos, sinceros. De abraços que nos enchem de felicidade e tornam felizes aqueles a quem os oferecemos. Necessitamos de abraços porque necessitamos de renovar permanentemente entre nós a comunhão de amor. Certamente com abraços distintos, em situações distintas e com pessoas distintas. Mas sempre abraços.

   E, perdoem-me, mais do que abraços impostos por uma qualquer vontade externa, que massifica, prefiro abraços sinceros, abraços amigos e genuínos. Como os do Martim ou os do pequeno Pedro.

 
Pampilhosa, 24 de Maio de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(89ª Reflexão)


[1] Cf. Cazuza. In Pensador. Disponível em: http://www.pensador.com
[2] Cf. José Luís Nunes. In Citador. Disponível em: http://www.citador.pt

ALEGRIA

   Gosto de atender a pequenas situações quotidianas da vida e de as refletir, retirando daí ensinamentos práticos que muito contribuem para valorização da vida pessoal ou comunitária.

   Nesta semana confrontei-me com duas vivências de alegria, assumidas em contextos completamente distintos, que me interpelaram, apontando-me o lado mais positivo da vida. A primeira, a de um jovem trabalhador, numa pastelaria das imediações de Coimbra, que irradia sempre o seu sorriso e a sua simpatia para com os colegas de trabalho e para com os clientes. Unindo-se à sua natural afabilidade, percebi como esta atitude favorece a comunhão dos trabalhadores daquele espaço, tornando-o um local de trabalho mais aprazível, onde, certamente, dá gosto acrescido assumir as ocupações diárias. Mas, de igual modo, ser recebido com um sorriso e com uma expressão de afabilidade, dispõe-nos logo para uma outra atitude interior, mesmo que vivamos cansaços ou nos debatamos com inquietações pessoais. Neste início de semana, saía dali com a noção de que a alegria é contagiante e nos faz bem, dispondo-nos a uma outra atitude interior. E ficava-me, uma vez mais, a certeza de que saber acolher com alegria contribui tanto, ou mais, para o nosso bem-estar, quanto a capacidade de ver satisfeitas as necessidades pessoais que nos levam a um qualquer espaço público. Ficava-me, ainda, o testemunho de um modo de ser e de estar, importante para mim, que exerço também tarefas públicas.

   A segunda situação cruza-se com as redes sociais. Desde há muito que aprecio as publicações de um professor de história, que partilha comigo o mesmo gosto por esta área do conhecimento. Curiosamente, nunca havíamos conversado pessoalmente senão no início desta semana. A minha interação com ele resumia-se ao apreço que manifesto permanentemente com as suas publicações, pois elas recolhem sempre o lado mais engraçado da vida, por vezes o anedótico sadio, fazendo-nos irradiar um sorriso, senão mesmo uma gargalhada, que nos dispõe muito bem – pequenos apontamentos que dão sabor ao dia e nos motivam à alegria. Inevitavelmente, formamos uma ideia da pessoa que publica; que, neste caso, conclui ser uma pessoa de bem com a vida; um professor realizado pessoal e profissionalmente; caracterizado por uma maneira de ser otimista, capaz de irradiar sempre uma alegria contagiante. Na conversa pessoal confirmei, realmente, tudo isso: uma pessoa feliz, realizada, alegre, comunicativa. Mas surpreendeu-me quando, ao falar-me da sua história pessoal, me expunha essa maneira de ser aliada a toda a sua realidade pessoal: o aparecimento de um condrossarcoma no fémur, que o levou a ser operado no IPO e a ser-lhe retirado parte do osso, bem como o joelho, entretanto substituídos por uma prótese; e de como as metástases reapareceram, tendo terminado, no ano passado, mais uma série de tratamentos de quimioterapia e radioterapia. Sem nunca abandonar a escola, senão quando teve de ser hospitalizado, regressando às suas tarefas letivas ainda de canadianas. Fiquei estupefacto! Uma pessoa enorme, capaz de recolher, no meio das muitas agruras da vida, aquilo que ela tem de melhor. Alguém que investe no lado mais belo da vida; que diz «não se levar demasiado a sério», nessa capacidade de recolher o melhor que a vida tem para lhe dar. Fez-me sentir pequenino tal testemunho; sobretudo, quando me questionava interiormente: e eu, como reagiria numa situação semelhante? Há gente que tem esta capacidade de nos fazer perceber que a vida é sempre um dom, e que mesmo no meio de grandes limitações, há sempre um lado belo que pode ser vivido. E não o vive isoladamente; partilha-o com os demais. Nunca diria que aquele colega tem esta história de vida. Daí que a minha admiração e apreço por ele se tivessem acentuado depois daquela conversa.

   Afinal, a alegria é sempre possível. Sem dúvida que, como já aqui considerámos, algumas pessoas são dotadas de uma especial bonomia e otimismo, que muito facilita a vida, ao contrário de outras. Mas todos nós podemos recolher sempre o lado melhor da nossa existência. Mesmo no meio das maiores dificuldades e dores.

   A alegria é um verdadeiro dom, que dá cor e sabor aos nossos dias. E que tem esta grande vantagem: porque todos nós somos seres em comunhão, tende a estender-se à vida e ao quotidiano dos outros. Assim aconteceu, para mim, com aquele jovem funcionário e com este professor de história.

Pampilhosa, 17 de Maio de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
                                                                                                                                             (88ª Reflexão)

 

CAMINHOS DE FÁTIMA

   Como nos demais anos, por esta altura, muitos são os peregrinos que trilham os caminhos de Fátima em peregrinação. No início desta semana pudemos verificar o número imenso de peregrinos em movimentação pelas nossas estradas nacionais: uns organizados em grandes grupos, que chegam a contar centenas de pessoas; outros em grupos mais pequenos; e outros, ainda, caminhando individualmente, ou acompanhados de mais uma ou duas pessoas. Segundo a informação da Agência Ecclesia, do início desta semana, trilhavam os nossos caminhos cerca de trinta e cinco mil peregrinos. Certamente um número que considera grupos com algum registo dos elementos em peregrinação, mas excedido pelas muitas centenas, senão milhares, dos que caminham sem qualquer indicação oficial. Evidente é, então, o número imenso de concidadãos nossos que nestes dias rumam a Fátima, peregrinando a pé. Formando, por vezes, colunas compactas e extensíssimas, como ainda no início desta semana podíamos verificar.

   Peregrinar em Portugal, de norte para sul ou de sul para norte, requer múltiplos cuidados, para que se salvaguarde a segurança dos peregrinos, a segurança dos condutores, e um autêntico proveito humano e espiritual de quem trilha os caminhos de peregrinação.

   É certo que, nos últimos anos, muito tem sido feito, quer ao nível da preparação das peregrinações a pé, quer ao nível da sua realização. Desde logo, assumiu-se já a preocupação da sinalização dos peregrinos, com coletes refletores e com lanternas para o período noturno, bem como a circulação em filas menos compactas, que permitam maior segurança na caminhada. Certamente com a consciencialização e formação de muitos dos animadores de peregrinações.

   Mas há ainda muito a fazer, particularmente no que respeita aos percursos ou trilhos de peregrinação. É com algum desagrado, precisamente porque está em causa o bem dos peregrinos, que vejo muitos deles a insistirem em percorrer as estradas mais movimentadas, com espaços muito escassos, senão mesmo quase inexistentes, de circulação, quando lhes são claramente propostos trilhos alternativos, que asseguram maior segurança e comodidade à peregrinação. Nos últimos tempos, apesar de alguns desencontros, tem sido feito um esforço grande na marcação de caminhos – os denominados «Caminhos de Fátima». Para esta ação têm concorrido instituições particulares de apoio aos peregrinos, municípios, instituições públicas, entre tantos outros que assumem como necessária a redefinição de trilhos de peregrinação para assegurar maior segurança e comodidade aos peregrinos de Fátima. Registei, precisamente esta semana, a atitude das Infraestruturas de Portugal que, nas proximidades de Coimbra, colocaram placas sinaléticas a indicar caminhos alternativos para Fátima, especialmente concebidas para apoiar os peregrinos.

   Ora, perante tais contributos há agora que sensibilizar, formar e ajudar os peregrinos a beneficiarem deste esforço de apoio que lhes é prestado. Sobretudo, há que sensibilizá-los para a necessidade de se afastarem das vias mais movimentadas, beneficiando de caminhos mais seguros e cómodos para a sua peregrinação. Este é, por certo, um esforço e um trabalho de sensibilização que necessita de ser feito em conjunto: instituições públicas, forças de segurança, Santuário de Fátima, instituições particulares ligadas aos Caminhos de Fátima, e a Igreja, com as suas múltiplas paróquias, grupos de peregrinos, animadores de peregrinação, ou peregrinos individuais. Há uma tarefa em que temos de persistir. Para tal, é necessário, ainda, continuar a redefinição de percursos mais seguros, onde ainda não estejam claramente definidos; publicar mapas e roteiros a fornecer aos peregrinos e animadores de peregrinações, com indicação dos novos trilhos; bem como orientar os peregrinos na sua caminhada, com a indicação dos trilhos definidos, como ainda agora víamos a GNR a efetuar nalguns troços mais problemáticos.

   Certamente que a primeira preocupação com a definição dos chamados «Caminhos de Fátima» se prende com a segurança. Mas beneficiar destes trilhos de peregrinação permite igualmente aos peregrinos aproveitarem melhor a sua caminhada – com menor ansiedade no caminho e maior disponibilidade para a contemplação e a renovação interior. É que o caminho não é apenas o percurso geográfico, mas também a experiência humana e espiritual que ele permite.

Pampilhosa, 10 de Maio de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(87ª Reflexão)

EDUCAÇÃO

   O Papa Francisco, na sua audiência geral de 13 de Maio de 2015, deixou-nos três palavras fundamentais para uma vida em família tranquila e em paz. São elas: «com licença», «obrigado» e «desculpa»[1]. Como refere o próprio Papa, «trata-se de palavras muito simples», mas que «não são fáceis de pôr em prática»[2].

   Com estas expressões, o Papa situa-nos ainda na esfera da boa educação. Refere o Papa Francisco: «uma pessoa bem-educada pede licença, diz obrigado ou pede desculpa quando se engana»[3].

   Ora, aquilo que pode parecer demasiado simples, quase desnecessário na sua reflexão, evidencia-se atualmente como algo a necessitar de aprofundamento, pois são expressões que compreendem atitudes que tendem, em muitas circunstâncias, a desvanecer-se nas relações interpessoais. É certo que o Papa contempla a vida familiar e algumas atitudes base para que esta se viva na tranquilidade. Mas podemos partir daqui para uma consideração mais vasta, que atenda às nossas relações interpessoais na família alargada – a comunidade de pertença.

   Se é certo que algumas destas atitudes de respeito e de consideração, consideradas pelo Papa, podem ter-se desvanecido na relação social, podíamos acrescentar-lhes outras expressões tão simples como bom dia, boa noite, ou até logo. Estas formas de tratamento sempre fizeram parte das relações comunitárias, como expressão básica de boa educação. Quantos de nós ouvimos dos nossos pais a interpelação: o que é que se diz? Exatamente a reclamar um obrigado, diante de um gesto de atenção para connosco, ou mesmo um bom dia, quando passávamos desatentos diante dos vizinhos.

   Hoje, numa sociedade que apela a uma hipervalorização do indivíduo, esquecendo, porventura, a correta relação comunitária, também as nossas pequenas comunidades tendem a desatender às expressões básicas de comunhão com os demais. Eu próprio reparava, há dias, como no contexto de uma vila, com traços próprios de uma aldeia, as pessoas se cruzavam, quantas vezes, sem nada se dizerem umas às outras. Especialmente os mais novos, que são os que mais tendem a isolar-se, sem esta expressão de vida comunitária, marcada por uma simples saudação. Se calhar não tanto por culpa sua, mas sim pela formação que lhes foi dada.

   Ficamos por vezes com a sensação de que numa mesma comunidade nos tornámos estranhos, na relação de uns com os outros.

   Como se não bastassem os meios tecnológicos, que hoje nos isolam em casa, as nossas interações comunitárias, na rua, padecem igualmente de algumas fragilidades, que advêm do isolamento e do individualismo. Necessitamos de retomar expressões básicas de inter-relação, de comunicação e de educação.

   Se é certo que o conceito de educação, como os demais conceitos, é evolutivo, em conformidade com o desenvolvimento humano e das comunidades, há valores que este conceito engloba que jamais se poderão perder. Entendendo a educação, de entre os seus múltiplos aspetos, como «domínio e observância das normas de conduta socialmente aceites»[4], ou como expressão de «cortesia», dizer «obrigado», «desculpe», «bom dia» ou «boa tarde» é algo de elementar.

   Numa sociedade individualista não podemos perder vivências básicas de comunhão. É que educar significa também o «processo que visa o pleno desenvolvimento intelectual, físico e moral de um indivíduo e a sua adequada inserção na sociedade»[5]. E não haverá, por certo, inserção e desenvolvimento da vida comunitária sem estas atitudes básicas. Um desafio a refazermos permanentemente as nossas relações, partindo das coisas mais simples.


Pampilhosa, 03 de Maio de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(86ª Reflexão)


[1] PAPA FRANCISCO – Audiência Geral. Vaticano, 13 de Maio de 2015. [Disponível em www.vatican.va. Consultado a 02.05.2018].
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
[4] Voc. Educação. In Dicionário de Língua Portuguesa. Aplicação online.
[5] Ibidem.

SECULARIZAÇÃO

   Emmanuel Macron, presidente da república francesa, fez um discurso em Paris, no contexto de um encontro organizado pela Conferência Episcopal Francesa, no passado dia 09 de abril, em que afirmava que a relação Igreja-Estado, em França, está «semeada de mal-entendidos e desconfianças recíprocas»[1]; mas que a França necessita da Igreja Francesa e do seu empenho na causa pública, referindo mesmo que a «França necessita da linfa católica», quer no empenhamento em relação aos destinos da nação, quer relativamente à União Europeia.

   Com este discurso, o presidente francês abre uma nova porta para as relações Igreja-Estado, no contexto da sociedade francesa. Sem nunca esquecer a autêntica secularização, enquanto «diferenciação entre o domínio político e o espiritual»[2], entende que todos têm o direito e o dever de dar um contributo válido para a edificação da sociedade e para a sua orientação política. Neste sentido, faz então o apelo veemente à Igreja Francesa para que ponha ao serviço do bem comum o seu imenso património de pensamento, de experiência e de vivência, amadurecido na longa duração do tempo.

   Mas, mais do que esta chamada para a ação, feita à Igreja Francesa, Macron coloca-se numa postura que se distancia de muitos dos seus antecessores e mesmo de uma certa elite francesa. Macron deixa perceber que não partilha de um laicismo absoluto, que a França sempre reclamou para si, como a grande herança da revolução francesa; mas sim de um espírito «ecuménico», capaz de reconhecer todos e de integrar num diálogo de «verdade» a especificidade de cada um. Neste sentido, afirma o presidente francês: «sou, como chefe de Estado, garante da liberdade de crer e de não crer, mas não sou o inventor nem o promotor de uma religião de Estado que substitui à transcendência divina um credo republicano». Com esta expressão podemos ver como o presidente está já distante dos ideais religiosos da revolução francesa! Macron percebeu, e afirma-o com toda a liberdade, que este tempo não se coaduna já com hostilizações ideológicas que visam remeter o outro ao silêncio, nem com um laicismo que rouba à França, à Europa e mesmo à nossa humanidade, a alma de que tanto necessitamos. Daí que, a finalizar o seu discurso, refira com toda a clareza: «há uma última liberdade que a Igreja nos deve dar, é a liberdade espiritual. Porque não somos feitos para um mundo cruzado apenas por objetivos materialistas. Os nossos contemporâneos precisam, quer acreditem ou não, de ouvir falar de outra perspetiva sobre o homem, além da perspetiva material. Precisam de saciar outra sede, que é uma sede de absoluto. Não se trata aqui de conversão, mas de uma voz que, com os outros, ouse ainda falar do homem como um ser vivo dotado de espírito. Que ouse falar de algo diferente do temporal, mas sem abdicar da razão ou do real. Que ouse penetrar na intensidade de uma esperança, e que por vezes nos faça tocar com o dedo esse mistério da humanidade que se chama santidade, de que o Papa Francisco diz na exortação publicada hoje que é o “rosto mais bonito da Igreja”»[3].

   Macron expressa-se com toda a sua liberdade de pensamento, sem ficar preso a imposições ideológicas. Mesmo numa França que reclama para si a laicidade e, em muitos dos seus setores sociais, se opôs a este discurso do presidente. Mas a liberdade é isto: capacidade de pensar por si, de afirmar convicções e de prosseguir no empenho de conciliar sensibilidades sociais, em atitude de diálogo e não com dogmatismos. Sendo que tal se torna particularmente impactante quando é assumido pelo mais alto magistrado de uma nação.

   Fiel a si e ao seu pensamento, devidamente fundamentado (ou não fosse ele um homem de formação filosófica), Macron tem a coragem de dizer o que pensa e sente sem qualquer constrangimento. Numa visão alargada e liberta, deixa-nos a ideia clara de que as sociedades só são verdadeiramente modernas quando integram todos, em vez de hostilizar alguns. Macron percebe, ainda, o lugar da Igreja Francesa, reclamando a sua ação, mas sempre na perspetiva de um diálogo que respeite todos. Isto, sim, pode considerar-se autêntica democracia e verdadeira visão da secularização.

   Certamente um exemplo para tantos que ainda hoje se deixam condicionar por preconceitos, ideias feitas, ou ideologias que visam apenas atingir interesses próprios. Fica claro, com Macron, que secularização não é secularismo, mas a justa autonomia da Igreja e do Estado no exercício das suas funções. Que não se hostilizam, mas se complementam.

Pampilhosa, 26 de Abril de 2018
Pe. Carlos Alberto G. Godinho
(85ª Reflexão)


[1] Cf. Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. In www.snpcultura.org [Consultado a 24.04.2018].
[2] CATROGA, Fernando – Entre deuses e césares. Secularização, Laicidade e Religião Civil. Coimbra: Edições Almedina, 2006, p. 48.
[3] Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, op. cit.